2º Ano de Filo/3º Bim.
A invenção da Política.
“A palavra tem origem nos tempos em que os gregos estavam
organizados em cidades-estado chamadas “polis”, nome do qual se derivaram
palavras como “politiké” (política em geral) e “politikós” (dos cidadãos,
pertencente aos cidadãos), que estenderam-se ao latim “politicus” e chegaram às
línguas européias modernas através do francês “politique” que, em 1265 já era
definida nesse idioma como “ciência do governo dos Estados”.
O termo política é derivado do grego antigo πολιτεία (politeía), que indicava todos os
procedimentos relativos à pólis, ou cidade-Estado. Por extensão, poderia
significar tanto cidade-Estado quanto sociedade, comunidade, coletividade e
outras definições referentes à vida urbana.
A formação da cidade
Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a
política, o que se diz é que desfizeram aquelas características da autoridade e
do poder. Embora, no começo, gregos e romanos tivessem conhecido a organização
econômico-social de tipo despótico ou patriarcal, um conjunto de medidas foram
tomadas pelos primeiros dirigentes – os legisladores – de modo a impedir a
concentração dos poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra,
da justiça e das armas, representante da divindade.
A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou
patrimônio privado do rei, nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia, mas
manteve -se como propriedade de famílias independentes, cuja peculiaridade
estava em não formarem uma casta fechada sobre si mesma, porém aberta à
incorporação de novas famílias e de indivíduos ou não-proprietários
enriquecidos no comércio.
Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de
Roma, há três aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política:
o primeiro, como assinalamos há pouco, é a forma da propriedade da terra; o
segundo, o fenômeno da urbanização; e o terceiro, o modo de divisão territorial
das cidades.
Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao
rei, mas às famílias independentes, e como as guerras ampliavam o contingente
de escravos, formasse na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que
migraram para as aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes,
prosperaram, fizeram, das aldeias, cidades, passaram a disputar o direito ao
poder com as grandes famílias agrárias. Uma luta de classes perpassa a história
grega e romana exigindo solução.
A urbanização significou uma complexa rede de relações
econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários,
de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados
da população urbana, os não-proprietários, genericamente chamados de “os
pobres”. A luta de classes incluía, assim, lutas entre os ricos e lutas entre
ricos e pobres. Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos
participavam das guerras externas, tanto para a expansão territorial, quanto
para a defesa de sua cidade, formando as milícias dos nativos da cidade. Essa
participação militar fazia com que todos se julgassem no direito, de algum
modo, de intervir nas decisões econômicas e legais das cidades.
A luta das classes pedia uma solução. Essa solução foi a
política +/- no séc. VIII a.C .
Finalmente, os primeiros chefes políticos ou legisladores
introduziram uma divisão territorial das cidades que visava a diminuir o
poderio das famílias ricas agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos
e a satisfazer a reivindicação dos camponeses pobres e dos artesãos e
assalariados urbanos pobres. Em Atenas, por exemplo, a polis foi subdividida em
unidades sociopolíticas denominadas demos; em Roma, em tribus. Quem nascesse
num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação econômica, tinha
assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No caso de Atenas,
todos os naturais do demos tinham o direito de participar diretamente do poder,
donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os não proprietários ou os pobres
formavam a plebe, que tinha o direito de eleger um representante – o tribuno da
plebe – para defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios
dos que participavam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam o
populus romanus. O regime político romano era, assim, uma oligarquia.
Os principais traços da invenção política.
Diante do poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder
político porque:
– Separaram a
autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio patriarcal e
patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à coletividade;
separaram privado e público e impediram a identificação do poder político com a
pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por eleições entre
os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;
– Separaram
autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao segundo. Isso não
significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o poder político não
fosse também um poder militar, mas sim que as missões militares deviam ser,
primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política e só depois
realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos eram
hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembleias dos cidadãos;
– Separaram autoridade mágico-religiosa e poder temporal
laico, impedindo a divinização dos governantes. Isso não significa que o poder
político deixasse de ter laços com a autoridade religiosa – os oráculos, na
Grécia, e os augúrios, em Roma, eram respeitados firmemente pelo poder
político. Significa, porém, que os dirigentes desejavam a aprovação e a
proteção dos deuses, sem que isso implicasse a divinização dos governantes e a
submissão da política à autoridade sacerdotal;
– Criaram a ideia e a
prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública, definidora dos
direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que fosse confundida com a
vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o direito, afirmaram a
diferença entre o poder político e todos os outros poderes e autoridades
existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância impessoal e coletiva o
direito exclusivo ao uso da força para punir crimes, reprimir revoltas e matar
para vingar, em nome da coletividade, um delito julgado intolerável por ela. Em
outras palavras, retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as
próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime. O monopólio da
força, da vingança e da violência passou para o Estado, sob a lei e o direito;
– Criaram instituições públicas para aplicação das leis e
garantia dos direitos, isto é, os tribunais e os magistrados;
– Criaram a instituição do erário público ou do fundo
público, isto é, dos bens e recursos que pertencem à sociedade e são por ela
administrados por meio de taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração
da propriedade e da riqueza nas mãos dos dirigentes;
– Criaram o espaço político ou espaço público – a assembleia
grega e o senado romano -, no qual os que possuem direitos iguais de cidadania
discutem suas opiniões, defendem seus interesses, deliberam em conjunto e
decidem por meio do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão
tomada. É esse o coração da invenção política.
De fato, e como vimos, a marca do poder despótico é o
segredo, a deliberação e a decisão a portas fechadas.
A política, ao contrário, introduz a prática da publicidade,
isto é, a exigência de que a sociedade conheça as deliberações e participe da
tomada de decisão. Além disso, a existência do espaço público de discussão,
deliberação e decisão significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos,
que as ações não foram fixadas de uma vez por todas por alguma vontade
transcendente, que erros de avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que
uma ação pode gerar problemas novos, não previstos nem imaginados, que exigirão
o aparecimento de novas leis e novas instituições.
Em outras palavras, gregos e romanos tornaram a política
inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção de possível
ou de possibilidade, isto é, a ideia de uma criação contínua da realidade
social.
Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de
classes, a política é inventada de tal maneira que, a cada solução encontrada,
um novo conflito ou uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em
lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a
política aparece como trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o
fracasso nesse trabalho é a causa do uso da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da
república romana fundaram a ideia e a prática da política na Cultura ocidental.
Eis por que os historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do
império de Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma
sucumbiu ao domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência
da política: para eles, o desaparecimento da pólis e da res-publica significava
o retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que
gregos e romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e
princípios fossem idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era
agrária e escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos –
estava excluída dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a
sociedade era patriarcal e, consequentemente, as mulheres também estavam
excluídas da cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os
estrangeiros e os miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos
no território da Cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era
apagada, mesmo que os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos
cargos, o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras
de prestígio que somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da
liturgia grega e do evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro
à cidade para festas, construção de templos e teatros, patrocínio de jogos
esportivos, de trabalhos artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade
sem classes, justa e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta
que uma sociedade oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas
contradições, sem escondê-los sob a sacralização do poder e sem fechar-se à
temporalidade e às mudanças.
Finalidade da vida política
Para os gregos, a finalidade da vida política era a justiça
na comunidade. A noção de justiça fora, inicialmente, elaborada em termos
míticos com base em três figuras principais: thémis, a lei divina trazida pela
deusa Thémis, que institui a ordem do Universo; kósmos, a ordem universal
estabelecida pela lei divina; diké, a justiça que a deusa Diké isntitui entre
as coisas e entre os homens, no respeito às leis divinas e à ordem cósmica.
Pouco a pouco, a noção de diké identifica-se com a regra natural para a ação
das coisas e dos homens e o critério para julgá-las.
A ideia de justiça se refere, portanto, a uma ordem divina e
natural, que regula, julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos. A
justiça é a lei e a ordem do mundo, isto é, da natureza ou physis, e ordem,
kósmos, constituem assim o campo da ideia de justiça.
A invenção da política exigiu que as explicações míticas
fossem afastadas, thémis e diké deixaram de ser vistas como duas deusas que
impunham ordem e leis ao mundo e aos seres humanos, passando a significar as
causas que fazem haver ordem, lei e justiça na natureza e na pólis. Justo é o
que segue a ordem natural e respeita a lei natural.
Mas a pólis existe por natureza ou por convenção entre os
homens? A justiça e a lei política são naturais ou convencionais? Essas
indagações colocam, de um lado, os sofistas, defensores do caráter convencional
da justiça e da lei e, de outro, Platão e Aristóteles defensores do caráter
natural da justiça e da lei.
A posição dos sofistas
Para os sofistas, a pólis nasce por convenção entre os seres
humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em
isolamento. Convencionam regras de convivência que se tornam leis, nómos. A
justiça é o consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e
preservar esse consenso.
Se a pólis e as leis são convenções humanas, podem mudar,
desde que haja mudança nas circunstâncias. A justiça será não só conservar as
leis mas também permitir sua mudança sem que isso destrua a comunidade
política, e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da ordem
política é o debate para chegar ao consenso, a expressão pública da vontade da
maioria, obtida pelo voto dos cidadãos reunidos em assembleia.
Por esse motivo, os sofistas se apresentavam como professores
da arte da discussão e da persuasão pela palavra (retórica). Mediante
remuneração, ensinavam os jovens a discutir em público, a defender e combater
opiniões, ensinando-lhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em
todas as questões.
A finalidade da política era a justiça entendida como
concórdia entre os cidadãos, conseguida na discussão pública de opiniões e a
expressão persuasiva dos argumentos antagônicos deviam levar à vitória do
interesse mais bem argumentado, aprovado pelo voto da maioria.
Em oposição aos sofistas, Platão e Aristóteles afirmam o
caráter natural da pólis e da justiça. Embora concordem nesse aspecto, diferem
no modo como concebem a própria justiça.
A posição de Platão
Para Platão, os seres humanos e a pólis possuem a mesma
estrutura. Os humanos são dotados de três almas ou três princípios de
atividades: a alma concupiscente ou desejante (situada nas entranhas ou no
baixo-ventre), que busca satisfação dos apetites do corpo, tanto os necessários
à sobrevivência como os que, simplesmente, causam o prazer; a alma irascível ou
colérica (situada no peito ou no coração), que defende o corpo contra as
agressões do meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor na proteção de
nossa vida; e a alma racional ou intelectual (situada na cabeça), que se dedica
ao conhecimento.
Também a pólis possui uma estrutura tripartite, formada por
três classes sociais: a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e
comerciantes, que garante a sobrevivência material da cidade; a classe dos guerreiros, responsável pela
defesa da cidade; e a classe dos magistrados, que garante o governo da cidade
sob as leis.
Um homem, diz Platão, é injusto quando a alma concupiscente
(os apetites e prazeres) é mais forte do que as outras duas, dominando-as.
Também é injusto quando a alma colérica (a agressividade) é mais poderosa do
que a racional, dominando-a.
O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja alma racional
(pensamento e vontade) é mais forte do que as outras duas almas, impondo à
concupiscente a virtude da temperança ou moderação, e à colérica, a virtude da
coragem, que deve controlar a concupiscência. O homem justo é o homem virtuoso;
a virtude, domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a
hierarquia das almas, a racional, superior, que domina as inferiores.
O que é a justiça política? Essa mesma hierarquia mas
aplicada à comunidade, os sábios legisladores devem governar, os militares,
subordinados aos legisladores, devem defender a cidade, e os membros da classe
econômica, subordinados aos legisladores, devem assegurar a sobrevivência da
pólis.
Como realizar a cidade justa? Pela educação dos cidadãos,
homens e mulheres (Platão não exclui as mulheres da política e critica os
gregos por exclui-las).
A cidade justa é governada pelos filósofos, administrada
pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada
classe cumprirá sua função para o bem da pólis, racionalmente dirigida pelos
filósofos.
Em contrapartida, a cidade injusta é aquela na qual o governo
está nas mãos dos proprietários, que não pensam no bem comum da pólis e lutarão
por interesses econômicos particulares, ou na dos militares, que mergulharão a
cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória.
Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da pólis e somente eles
podem governá-la com justiça.
A posição de Aristóteles
Aristóteles elabora uma teoria política diversa da dos
sofistas e de Platão.
Para demonstrar o que é a justiça, diz ele, precisamos
distinguir dois tipos de bens: os partilháveis e os participáveis. Um bem é
partilhável quando é uma quantidade que pode ser dividida e distribuída, a
riqueza é um bem partilhável. Um bem é participável quando é uma qualidade
indivisível, que não pode ser repartida nem distribuída, podendo apenas ser
participada, o poder político é um bem participável.
Existem, pois, dois tipos de justiça na cidade: a
distributiva, referente aos bens econômicos partilháveis, e a participativa,
referente ao poder político participável. A cidade justa saberá distinguir
esses dois tipos de justiça e realizar ambos.
A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que lhe é
devido e sua função é dar a cada um o que lhe é devido e sua função é dar
desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. Suponhamos, por exemplo, que
a pólis esteja atravessando um período de fome em decorrência de secas ou
enchentes e que adquira alimentos para distribuí-los a todos.
Para ser justa, a cidade não poderia reparti-los de modo igual
para todos. De fato, aos que são pobres, deve doá-los, mas, aos que são ricos,
deve vendê-los, de modo a conseguir fundos para aquisição de novos alimentos.
Se doar a todos ou vender a todos, será injusta. Também será injusta se
atribuir a todos as mesmas quantidades de alimentos, pois dará quantidades
iguais para famílias desiguais, umas mais numerosas do que as outras.
Em suma, é injusto tratar igualmente os desiguais para que
recebam os partilháveis segundo suas condições e necessidades.
A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de
igualar os desiguais, dando-lhes desigualmente os bens, implica afirmar que
numa cidade em que a diferença entre ricos e pobres é muito grande faz vigorar
a injustiça, pois não dá a todos o que lhes é devido como seres humanos.
Na cidade injusta, as leis, em lugar de permitirem aos pobres
o acesso às riquezas (por meio de limitações impostas à extensão da
propriedade, de fixação da boa remuneração aos trabalhadores pobres, de
impostos e tributos que recaiam sobre os ricos apenas, etc.), vedam-lhes tal
direito.
Ora, somente os que não são forçados às labutas ininterruptas
para a sobrevivência são capazes de uma vida plenamente humana e feliz. A
cidade injusta, portanto, impede que uma parte dos cidadãos tenha assegurado o
direito à vida boa.
Enquanto Platão se preocupa com a educação e formação do
dirigente político, o governante filósofo, Aristóteles se interessa pela
qualidade das instituições políticas (assembleias, tribunais, forma da coleta
de impostos e tributos, distribuição da riqueza, organização do exército,
etc.).
Com isso, ambos legam para as teorias políticas subsequentes
duas maneiras de conceber onde se situa a qualidade justa da cidade:
platonicamente, essa qualidade depende das virtudes do dirigente,
aristotelicamente, das virtudes das instituições.
Romanos: a construção do príncipe
Após o primeiro período de sua história política, a época
arcaica e lendária dos reis patriarcais, semi-humanos e semidivinos, Roma
torna-se uma república aristocrática governada pelos grandes senhores de
terras, os patrícios, e pelos representantes eleitos pela plebe, os tribunos da
plebe. O poder cabe a uma instituição designada como o Senado e o Povo Romano,
que pode, em certas circunstâncias previstas na lei, receber os “homens novos”,
isto é, os plebeus que, por suas riquezas, casamentos ou feitos militares,
passam a fazer parte do grupo governante. Roma é uma república por três motivos
principais: 1. o governo está submetido a leis escritas impessoais; 2. a res publica
(coisa pública) é o solo público romano, distribuído às famílias patrícias, mas
pertencentes legalmente a Roma; 3. o governo administra os fundos públicos
(recursos econômicos provenientes de impostos, taxas e tributos), usando-os
para a construção de estradas, aquedutos, templos, monumentos e novas cidades,
e para a manutenção dos exércitos.
No centro do governo estavam dois cônsules, eleitos pelo
Senado e pelo Povo Romano, aos quais eram entregues dois poderes: o
administrativo (gestão dos fundos e serviços públicos) e o imperium, isto é, o
poder judiciário e militar. O Senado reservava para si duas autoridades: o
conselho dos magistrados e a autoridade moral sobre a religião e a
política.
República oligárquica, Roma é uma potência com vocação militar.
Em 50 anos, conquista todo o mundo conhecido, com exceção da Índia e da China.
Esse feito é obra militar dos cônsules que, como dissemos, foram investidos com
o imperium (poder judiciário e militar). São imperadores.
Pouco a pouco, à medida que Roma se torna uma potência
mundial, alguns dos cônsules (Júlio César, Numa, Pompeu) reivindicam mais poder
e mais autoridade, que lhes vão sendo concedidos pelo Senado e pelo Povo
Romano. Gradualmente, sob a aparência de uma república aristocrática,
instala-se uma república monárquica, que se inicia com Júlio César e se
consolidará nas mãos de Augusto. Com ele, a monarquia irá perdendo o caráter
republicano até substituir o consulado, tornando-se senhorial e instituir-se
como Principado. O príncipe é imperador: chefe militar, detentor do poder
judiciário, magistrado, senhor das terras do império romano, autoridade
suprema.
Essa mudança transparece na teoria política. Embora esta
continue afirmando os valores republicanos – importância das leis, do direito e
das instituições públicas, particularmente do Senado e Povo Romano – a
preocupação dos teóricos estará voltada para a figura do príncipe.
Inspirando-se no governante-filósofo de Platão, os pensadores
romanos, como Cícero e Sêneca, produzirão o ideal do príncipe perfeito ou do
Bom Governo. A nova teoria política mantém a ideia grega de que a comunidade
política tem como finalidade a vida boa ou a justiça, identificada com a ordem,
harmonia ou concórdia no interior da Cidade. No entanto, agora, a justiça
dependerá das qualidades morais do governante. O príncipe deve ser o modelo das
virtudes para a comunidade, pois ela o imitará.
Na verdade, os pensadores romanos viram-se entre duas
teorias: a platônica, que pretendia chegar à política legítima e justa educando
virtuosamente os governantes; e a aristotélica, que pretendia chegar à política
legítima e justa propondo qualidades positivas para as instituições da Cidade,
das quais dependiam as virtudes dos cidadãos. Entre as duas, os romanos
escolheram a platônica, mas tenderam a dar menor importância à organização
política da sociedade (as três classes platônicas) e maior importância à
formação do príncipe virtuoso.
O príncipe, como todo ser humano, é passional e racional,
porém, diferentemente dos outros humanos, não poderá ceder às paixões, mas
apenas à razão. Por isso, deve ser educado para possuir um conjunto de virtudes
que são próprias do governante justo, ou seja, as virtudes principescas. O
verdadeiro vir (varão, em latim) possui três séries de virtutes ou qualidades
morais. A* primeira delas é comum a todo homem virtuoso, sendo constituída
pelas quatro virtudes cardeais: sabedoria ou prudência, justiça ou equidade,
coragem e temperança ou moderação. A *segunda série constitui o conjunto das
virtudes propriamente principescas: honradez ou disposição para manter os
princípios em todas as circunstâncias, magnanimidade ou clemência, isto é,
capacidade para dar punição justa e para perdoar, e liberalidade, isto é,
disposição para colocar sua riqueza a serviço do povo. Finalmente, a terceira
série de virtudes refere-se aos objetivos que devem ser almejados pelo príncipe
virtuoso: honra, glória e fama.
Cícero insiste em que o verdadeiro príncipe é aquele que
nunca se deixa arrastar por paixões que o transformem numa besta. Não pode ter
a violência do leão nem a astúcia da raposa, mas deve, em todas as
circunstâncias, comportar-se como homem dotado de vontade racional. O príncipe
será o Bom Governo se for um Bom Conselho, isto é, sábio, devendo buscar o amor
e o respeito dos súditos.
Em contraponto ao Bom Governo, a teoria política ergue o
retrato do tirano ou o príncipe vicioso: bestial, intemperante, passional,
injusto, covarde, impiedoso, avarento e perdulário, sem honra, fama ou glória,
odiado por todos e de todos temeroso. Inseguro e odiado, rodeia-se de soldados,
vivendo isolado em fortalezas, temendo a rua e a corte.
A teoria do Bom Governo deposita na pessoa do governante a
qualidade da política e faz de suas virtudes privadas, virtudes públicas. O
príncipe encarna a comunidade e a espelha, sendo por ela imitado tanto na
virtude quanto no vício.
O poder teológico-político: o cristianismo
Para compreendermos as teorias políticas cristãs precisamos
ter em mente as duas tradições que o cristianismo recebe como herança e sobre
as quais elaborará suas próprias ideias: a hebraica e a romana.
Os hebreus, embora tenham conhecido várias modalidades de
governo, deram ao poder, sob qualquer forma em que fosse exercido, uma marca
fundamental irrevogável: o caráter teocrático.
Do lado romano no período em que o cristianismo se expande e
se encontra em vias de tornar-se religião oficial do Império Romano, o príncipe
já se encontra investido de novos poderes. Sendo Roma senhora do Universo, o
imperador romano tenderá a ser visto como senhor do Universo, ocupando o topo
da hierarquia do mundo, em cujo centro está Roma, a Cidade Eterna.
A elaboração da teoria política cristã como teologia política
resultará da apropriação dessa dupla herança pelo poder eclesiástico.
A instituição eclesiástica
O cristianismo, diferentemente da maioria das religiões
antigas, não surge como religião nacional ou de um povo ou de um Estado
determinados. No entanto, ele deveria ter sido uma religião nacional, uma vez
que Jesus se apresentava como o messias esperado pelo povo judaico. Em outras
palavras, se Jesus tivesse sido vitorioso, teria sido capitão, rei e sacerdote,
pois era assim que o messias havia sido imaginado e esperado. Derrotado pela
monarquia judaica, que usara o poder do Império Romano para julgá-lo e
condená-lo, Jesus ressurge (ressuscita) como figura puramente espiritual, rei
de um reino que não é deste mundo. O cristianismo se constitui, portanto, à
margem do poder político e contra ele, pois os “reinos deste mundo” serão,
pouco a pouco, vistos como obra de Satanás para a perdição do gênero humano.
O poder imperial romano criara, sem o saber, a ideia do homem
universal, sem pátria e sem comunidade política. O cristianismo será uma seita
religiosa dirigida aos seres humanos em geral, com a promessa de salvação
individual eterna. À ideia política da lei escrita e codificada em regras
objetivas contrapõe a ideia de lei moral invisível (o dever à obediência a Deus
e o amor ao próximo), inscrita pelo Pai no coração de cada um.
A ekklesia organiza-se a partir de uma autoridade constituída
pelo próprio Cristo quando, na última ceia, autoriza os apóstolos a celebrar a
eucaristia (o pão e o vinho como símbolos do corpo e sangue do messias) e, no
dia de Pentecostes, ordena-lhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa
Nova (o Evangelho).
O poder eclesiástico
O poderio da Igreja cresce à medida que se esfacela e
desmorona o Império Romano. Dois motivos levam a esse crescimento: em primeiro
lugar, a expansão do próprio cristianismo pela obra da evangelização dos povos,
realizada pelos padres nos territórios do Império Romano e para além deles; em
segundo lugar, porque o esfacelamento de Roma, do qual resultará, nos séculos
seguintes, a formação sócio-econômica conhecida como feudalismo, fragmentou a
propriedade da terra (anteriormente, tida como patrimônio de Roma e do
imperador) e fez surgirem pequenos poderes locais isolados, de sorte que o
único poder centralizado e homogeneamente organizado era o da Igreja.
A Igreja (tanto em Roma quanto em Bizâncio, tanto no Ocidente
quanto no Oriente) detém três poderes crescentes, à medida que o Império decai:
*1. o poder religioso de ligar os homens a Deus e dele desligá-los; *2. o poder
econômico decorrente de grandes propriedades fundiárias acumuladas no correr de
vários séculos, seja porque os nobres do Império, ao se converterem, doaram
suas terras à instituição eclesiástica, seja porque esta recebera terras como
recompensa por serviços prestados aos imperadores; *3. o poder intelectual,
porque se torna guardiã e intérprete única dos textos sagrados – a Bíblia – e
de todos os textos produzidos pela cultura greco-romana – direito, filosofia,
literatura, teatro, manuais de técnicas, etc. Saber ler e escrever tornou-se privilégio
exclusivo da instituição eclesiástica. Será a Igreja, portanto, a formuladora
das teorias políticas cristãs para os reinos e impérios cristãos. Essas teorias
elaborarão a concepção teológico-política do poder, isto é, o vínculo interno
entre religião e política.
Dupla investidura
As teorias teológico-políticas foram elaboradas para resolver
dois conflitos que atravessam toda a Idade Média: o conflito entre o papa e o
imperador, de um lado, e entre o imperador e as assembleias dos barões, de
outro. O conflito papa-imperador é consequência da concepção teocrática do
poder. Se Deus escolhe quem deverá representá-lo, dando o poder ao escolhido,
quem é este: o papa ou o imperador?
A primeira solução encontrada, após a querela das
investiduras, foi trazida pelos juristas de Carlos Magno, com a teoria da dupla
investidura: o imperador é investido no poder temporal pelo papa que o unge e o
coroa; o papa recebe do imperador a investidura da espada, isto é, o imperador
jura defender e proteger a Igreja, sob a condição de que esta nunca interfira
nos assuntos administrativos e militares do império. Assim, o imperador depende
do papa para receber o poder político, mas o papa depende do imperador para
manter o poder eclesiástico.
O conflito entre o imperador e as assembleias dos barões e
reis diz respeito à escolha do imperador. Este conflito revela o problema de
uma política fundada em duas fontes antagônicas. De fato, barões e reis invocam
a chamada Lei Régia Romana, segundo a qual o governante recebe do povo o poder,
sendo, portanto, ocupante eleito do poder. Barões e reis afirmam que são os
instituidores do imperador. Este, porém, invoca a Bíblia e a origem teocrática
do poder, afirmando que seu poder não vem dos barões e reis, mas de Deus.
A solução será trazida pela teoria que distingue entre
eleição e unção. O imperador, de fato, é eleito pelos pares para o cargo, mas
só terá o poder através da unção com óleos santos – afirma-se que é ungido com
o mesmo óleo que ungiu Davi e Salomão – e quem unge o imperador é a Igreja,
isto é, o papa.
Os dois corpos do rei
Como se observa, a teoria da dupla investidura e da distinção
entre eleição e unção deixa o imperador à mercê do papa. Para fortalecer o
imperador contra o papa, os reis e os barões, é elaborada uma teoria, que, mais
tarde, sustentará as teorias da monarquia absoluta por direito divino. Trata-se
da teologia política dos dois corpos do rei (isto é, do imperador).
Um rei-pela-graça-de-Deus é a imitação de Jesus Cristo. Jesus
possui duas naturezas: a humana, mortal, e a mística ou divina, imortal. Como
Jesus, o rei tem dois corpos: um corpo humano, que nasce, vive, adoece,
envelhece e morre, e um corpo místico, perene e imortal, seu corpo político. O
corpo político do rei não nasce, nem adoece, envelhece ou morre. Por isso,
ninguém, a não ser Deus, pode lhe dar esse corpo, e ninguém, a não ser Deus,
pode tirar-lhe tal corpo. Não o recebe nem dos barões e reis, nem do papa, e
não pode ser-lhe tirado pelos reis, pelos barões ou pelo papa.
***
Referência Bibliográfica.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora
Ática, 2000.
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