3º Ano de Filo/3º Bim.
O nascimento da Lógica
É lógico!
“É lógico que eu vou!”, “É lógico que ela disse isso!”.
Quando dizemos frases como essas, a expressão “é lógico que ” indica, para nós
e para a pessoa com quem estamos falando, que se trata de alguma coisa
evidente.
A expressão aparece como se fosse a conclusão de um
raciocínio implícito, compartilhado pelos interlocutores do discurso. Ao dizer
“É lógico que eu vou!”, estou supondo que quem me ouve sabe, sem que isso seja
dito explicitamente, que também estou afirmando: “Você me conhece, sabe o que
penso, gosto ou quero, sabe o que vai acontecer no lugar x e na hora y e,
portanto, não há dúvida de que irei até lá”.
Ao dizer “É lógico que ela disse isso!”, a situação é
semelhante. A expressão seria a conclusão de algo que eu e a outra pessoa
sabemos, como se eu estivesse dizendo: “Sabendo quem ela é, o que pensa, gosta,
quer, o que costuma dizer e fazer, e vendo o que está acontecendo agora,
concluo que é evidente que ela disse isso, pois era de se esperar que ela o
dissesse”.
Nesses casos, estamos tirando uma conclusão que nos parece
óbvia, e dizer “é lógico que” seria o mesmo que dizer: “é claro que” ou “não há
dúvida de que ”.
Em certas ocasiões, ouvimos, lemos, vemos alguma coisa e
nossa reação é dizer: “Não. Não pode ser assim. Isso não tem lógica!”. Ou, então:
“Isso não é lógico!”. Essas duas expressões indicam uma situação oposta às
anteriores, ou seja, agora uma conclusão foi tirada por alguém, mas o que já
sabemos (de uma pessoa, de um fato, de uma ideia, de um livro) nos faz julgar
que a conclusão é indevida, está errada, deveria ser outra. É possível, também,
que as duas expressões estejam indicando que o conhecimento que possuímos sobre
alguma coisa, sobre alguém ou sobre um fato não é suficiente para
compreendermos o que estamos ouvindo, vendo, lendo e por isso nos parece “não
ter lógica”.
Nesses vários exemplos, podemos perceber que as palavras
lógica e lógico são usadas por nós para significar:
1. ou uma inferência: visto que conheço x, disso posso
concluir y como consequência;
2. ou a exigência de coerência: visto que x é assim, então é
preciso que y seja assim;
3. ou a exigência de que não haja contradição entre o que
sabemos de x e a conclusão y a que chegamos;
4. ou a exigência de que, para entender a conclusão y,
precisamos saber o suficiente sobre x para conhecer por que se chegou a y.
Inferência, coerência, conclusão sem contradições, conclusão
a partir de conhecimentos suficientes são algumas noções implicitamente
pressupostas por nós toda vez que afirmamos que algo é lógico ou ilógico.
Ao usarmos as palavras lógica e lógico estamos participando
de uma tradição de pensamento que se origina da Filosofia grega, quando a
palavra logos – significando linguagem-discurso e pensamento-conhecimento –
conduziu os filósofos a indagar se o logos obedecia ou não a regras, possuía ou
não normas, princípios e critérios para seu uso e funcionamento.
A disciplina filosófica que se ocupa com essas questões
chama-se Lógica.
O aparecimento da lógica: Heráclito e Parmênides
Quando estudamos o nascimento da Filosofia, vimos que os
primeiros filósofos se preocupavam com a origem, a transformação e o
desaparecimento de todos os seres. Preocupavam-se com o devir.
Duas grandes tendências adotaram posições opostas a esse
respeito, na época do surgimento da Filosofia: a do filósofo Heráclito de Éfeso
e a do filósofo Parmênides de Eléia.
*Heráclito afirmava que somente o devir ou a mudança é real.
O dia se torna noite, o inverno se torna primavera, está se torna verão, o
úmido seca, o seco umedece, o frio esquenta, o quente esfria, o grande diminui,
o pequeno cresce, o doente ganha saúde, a treva se faz luz, está se transforma
naquela, a vida cede lugar à morte, está dá origem àquela.
O mundo, dizia
Heráclito, é um fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo, mas
tudo se transforma no seu contrário. A luta é a harmonia dos contrários,
responsável pela ordem racional do universo. Nossa experiência sensorial
percebe o mundo como se tudo fosse estável e permanente, mas o pensamento sabe
que nada permanece, tudo se torna contrário de si mesmo. O logos é a mudança e
a contradição.
*Parmênides, porém, afirmava que o devir, o fluxo dos
contrários, é uma aparência, mera opinião que formamos porque confundimos a
realidade com as nossas sensações, percepções e lembranças. O devir dos
contrários é uma linguagem ilusória, não existe, é irreal, não é. É o Não-Ser,
o nada, impensável e indizível. O que existe real e verdadeiramente é o que não
muda nunca, o que não se torna oposto a si mesmo, mas permanece sempre idêntico
a si mesmo, sem contrariedades internas.
É o Ser .
Pensar e dizer só são possíveis se as coisas que pensamos e
dizemos guardarem a identidade, forem permanentes. Só podemos dizer e pensar
aquilo que é sempre idêntico a si mesmo. Por isso somente o Ser pode ser
pensado e dito. Nossos sentidos nos dão a aparência mutável e contraditória, o
Não-Ser; somente o pensamento puro pode alcançar e conhecer aquilo que é ou
existe realmente, o Ser, e dizê-lo em sua verdade.
O logos é o ser como pensamento e linguagem verdadeiros e,
portanto, a verdade é a afirmação da permanência contra a mudança, da
identidade contra a contradição dos opostos.
Assim, Heráclito afirmava que a verdade e o logos são a
mudança das coisas nos seus contrários, enquanto Parmênides afirmava que são a
identidade do Ser imutável, oposto à aparência sensível da luta dos contrários.
Parmênides introduz a ideia de que o que é contrário a si
mesmo, ou se torna o contrário do que era, não pode ser (existir), não pode ser
pensado nem dito porque é contraditório, e a contradição é o impensável e o
indizível, uma vez que uma coisa que se torne oposta de si mesma destrói-se a
si mesma, torna-se nada.
Para Heráclito, a contradição é a lei racional da realidade;
para Parmênides, a identidade é essa lei racional.
A história da Filosofia grega será a história de um
gigantesco esforço para encontrar uma solução para o problema posto por
Heráclito e Parmênides, pois, se o primeiro tiver razão, o pensamento deverá
ser um fluxo perpétuo e a verdade será a perpétua contradição dos seres em
mudança contínua; mas se Parmênides tiver razão, o mundo em que vivemos não
terá sentido, não poderá ser conhecido, será uma aparência impensável e
viveremos na ilusão.
Será preciso, portanto, uma solução que prove que a mudança e
os contrários existem e podem ser pensados, mas, ao mesmo tempo, que prove que
a identidade ou permanência dos seres também existe, é verdadeira e pode ser
pensada. Como encontrar essa solução?
O aparecimento da lógica: Platão e Aristóteles.
No momento de seu apogeu, isto é, de Platão e de Aristóteles,
a Filosofia oferecerá as duas soluções mais importantes para o problema da
contradição-mudança e identidade-permanência dos seres. Não vamos, aqui, falar
dessas duas filosofias, mas destacar um aspecto de cada uma delas relacionado
com o nosso assunto, isto é, com o surgimento da lógica.
*Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere
ao mundo material ou físico, isto é, ao mundo dos seres corporais, pois a
matéria é o que está sujeito a mudanças contínuas e a oposições internas.
Heráclito está certo no que diz respeito ao mundo de nossas sensações,
percepções e opiniões: o mundo natural ou material (que Platão chama de mundo
sensível) é o devir permanente.
No entanto, dizia Platão, esse mundo é uma aparência (é o
mundo dos prisioneiros da caverna), é uma cópia ou sombra do mundo verdadeiro e
real e, nesse, Parmênides é quem tem razão. O mundo verdadeiro é o das
essências imutáveis (que Platão chama de mundo inteligível), sem contradições
nem oposições, sem transformação, onde nenhum ser passa para o seu
contraditório.
Mas como conhecer as essências e abandonar as aparências?
Como sair da caverna? Através de um método do pensamento e da linguagem chamado
dialética.
Em grego, a palavra dia quer dizer dois, duplo; o sufixo
lética deriva-se de logos e do verbo
legin (cujo sentido estudamos nos capítulos dedicados à linguagem e ao
pensamento). A dialética, como já vimos, é um diálogo ou uma conversa em que os
interlocutores possuem opiniões opostas sobre alguma coisa e devem discutir ou
argumentar de modo a passar das opiniões contrárias à mesma ideia ou ao mesmo
pensamento sobre aquilo que conversam. Devem passar de imagens contraditórias a
conceitos idênticos para todos os pensantes.
A dialética platônica é um procedimento intelectual e
linguístico que parte de alguma coisa que deve ser separada ou dividida em dois
ou duas partes contrárias ou opostas, de modo que se conheça sua contradição e
se possa determinar qual dos contrários é verdadeiro e qual é falso. A cada
divisão surge um par de contrários, que devem ser separados e novamente
divididos, até que se chegue a um termo indivisível, isto é, não formado por
nenhuma oposição ou contradição e que será a ideia verdadeira ou a essência da
coisa investigada. Partindo de sensações, imagens, opiniões contraditórias
sobre alguma coisa, a dialética vai separando os opostos em pares, mostrando
que um dos termos é aparência e ilusão e o outro, verdadeiro ou essência.
A dialética é um debate, uma discussão, um diálogo entre
opiniões contrárias e contraditórias para que o pensamento e a linguagem passem
da contradição entre as aparências à identidade de uma essência. Superar os
contraditórios e chegar ao que é sempre idêntico a si mesmo é a tarefa da
discussão dialética, que revela o mundo sensível como heraclitiano (a luta dos
contrários, a mudança incessante) e o mundo inteligível como parmenidiano (a
identidade perene de cada ideia consigo mesma).
*Aristóteles, por sua vez, segue uma via diferente da escolhida
por Platão. Considera desnecessário separar realidade e aparência em dois
mundos diferentes – há um único mundo no qual existem essências e aparências –
e não aceita que a mudança ou o devir seja mera aparência ilusória. Há seres
cuja essência é mudar e há seres cuja essência é imutável. O erro de Heráclito
foi supor que a mudança se realiza sob a forma da contradição, isto é, que as
coisas se transformam nos seus opostos, pois a mudança ou transformação é a
maneira pela qual as coisas realizam todas as potencialidades contidas em suas
essência e esta não é contraditória, mas uma identidade que o pensamento pode
conhecer.
Assim, por exemplo, quando a criança se torna adulta ou
quando a semente se torna árvore, nenhuma delas tornou-se contrária a si mesma,
mas desenvolveu uma potencialidade definida pela identidade própria de sua
essência.
Cabe à Filosofia conhecer como e por que as coisas, sem
mudarem de essência, transformam-se, assim como cabe à Filosofia conhecer como
e por que há seres imutáveis (como as entidades matemáticas e as divinas).
Ambos se enganaram ao supor que identidade e mudança são
contraditórias. Tal engano levou Platão à desnecessária divisão dos mundos.
Em segundo lugar, Aristóteles considera que a dialética não é
um procedimento seguro para o pensamento e a linguagem da Filosofia e da
ciência, pois tem como ponto de partida simples opiniões contrárias dos
debatedores, e a escolha de uma opinião contra outra não garante chegar à
essência da coisa investigada. A dialética, diz Aristóteles, é boa para as
disputas oratórias da política e do teatro, para a retórica, pois esta tem como
finalidade persuadir alguém, oferecendo argumentos fortes que convençam o oponente
e os ouvintes. É adequada para os assuntos sobre os quais só cabe a persuasão,
mas não para a Filosofia e a ciência, porque, nestas, interessa a demonstração
e a prova de uma verdade.
Substituindo a dialética por um conjunto de procedimentos de
demonstração e prova, Aristóteles criou a Lógica propriamente dita, que e (a
palavra lógica será empregada, séculos mais tarde, pelos estóicos e Alexandre
de Afrodísia).
Qual a diferença entre a dialética platônica e a lógica (ou
analítica) aristotélica?
Em primeiro lugar, a dialética platônica é o exercício direto
do pensamento e da linguagem, um modo de pensar que opera com os conteúdos do
pensamento e do discurso. A lógica aristotélica é um instrumento que antecede o
exercício do pensamento e da linguagem, oferecendo-lhes meios para realizar o
conhecimento e o discurso. Para Platão, a dialética é um modo de conhecer. Para
Aristóteles, a lógica (ou analítica) é um instrumento para o conhecer.
Em segundo lugar, a dialética platônica é uma atividade
intelectual destinada a trabalhar contrários e contradições para superá-los,
chegando à identidade da essência ou da ideia imutável. Depurando e purificando
as opiniões contrárias, a dialética platônica chega à verdade do que é idêntico
e o mesmo para todas as inteligências. A lógica aristotélica oferece
procedimentos que devem ser empregados naqueles raciocínios que se referem a
todas as coisas das quais possamos ter um conhecimento universal e necessário,
e seu ponto de partida não são opiniões contrárias, mas princípios, regras e
leis necessárias e universais do pensamento.
Referência Bibliográfica:
CHAUÍ, Marilena. A gêneses da lógica in Convite à Filosofia.
São Paulo: Ática, 2000.
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