terça-feira, 9 de outubro de 2018

2º Ano / 4º Bim.


AS FILOSOFIAS POLÍTICAS

O ideal republicano
À volta dos castelos feudais, durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou burgos. Enquanto na sociedade como um todo prevalecia a relação de vassalagem – juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo -, nos burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social, a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos, comerciantes, etc. organizavam-se em confrarias, em que os membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca. Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas, era possível, a partir de regras convencionadas entre seus membros, ascender na hierarquia e, externamente, nas relações com outras corporações, todos eram considerados livres e iguais.
As corporações fazem surgir uma nova classe social que, nos séculos seguintes, irá tornar-se economicamente dominante e buscará também o domínio político: a burguesia, nascida nos burgos. Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tornam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes, enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir. As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas.
As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas: as cidades desejam independência em face de barões, reis, papas e imperadores. Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias políticas, suscitam um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de papas e imperadores. Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.
Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricos, tratados de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado. Esparta, Atenas e Roma são tomadas como exemplos da liberdade republicana. Imitá-las e valorizar a prática política, a vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Fala-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana.
Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno: O príncipe, de Maquiavel. Antes de “O príncipe” Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o poder seria uma graça ou um fator divino; no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar uma outra idéia cristã, qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina.
Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política. Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas: ? encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política. Em outras palavras, para uns, o fundamento da política encontra-se em Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política.
Há, pois, algo – Deus, Natureza ou razão – anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;
? afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem, a qualquer preço, ser afastados da comunidade e do poder;
? assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;
? classificam os regimes políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com os segundos o poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e perverso. Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.
Maquiavélico, maquiavelismo
Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e maquiavelismo. São usadas quando alguém deseja referir-se tanto à política quanto aos políticos, quanto a certas atitudes das pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por exemplo, num comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no maquiavelismo de certos jornais, etc.).
Quando ouvimos ou empregamos essas expressões? Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém desleal, hipócrita, fingidor, poderosamente malévolo, que brinca com sentimentos e desejos dos outros, mente-lhes, faz a eles promessas que sabe que não cumprirá, usa a boa-fé alheia em seu próprio proveito. Falamos num “poder maquiavélico” para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores, mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais, violentos e perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição. Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazerem exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso.
Como se nota, maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado diabólico. Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome, fale em maquiavélico e maquiavelismo?
A revolução maquiavelista
Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e, diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo. Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, via as lutas européias de centralização monárquica (França, Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo viu a fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja.
A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma nova concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença. Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.
Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política, observaremos por onde passa a ruptura maquiavelista:
1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um pólo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse pólo é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A política resulta da ação social a partir das divisões sociais;
2. Maquiavel não aceita a idéia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum. Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade. A finalidade política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei;
3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtu, mas esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado. Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido – o que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa ser amado, pois isto o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe aparecerá na qualidade das instituições que soube criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte;
4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político – tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver – poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade. Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do povo.
O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força, o poder. Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for uma república e não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de particulares. Dissemos que a tradição grega tornara ética e política inseparáveis, que a tradição romana colocara essa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do governante e que a tradição cristã transformara a pessoa política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da política, orientada pela idéia de justiça e bem comum. Esse conjunto de idéias e imagens é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção maquiavelista que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe virtuoso.
Quando estudamos a ética, vimos que a questão central posta pelos filósofos sempre foi: O que está e o que não está em nosso poder? Vimos também que “estar em nosso poder” significava a ação voluntária racional livre, própria da virtude, e “não estar em nosso poder” significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação. Vimos, ainda, que esse conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de nossa vontade foi chamado pela tradição filosófica de fortuna. A oposição virtude-fortuna jamais abandonou a ética e, como esta surgia inseparável da política, a mesma oposição se fez presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante fortuna. Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido inteiramente novo.
A virtu do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra ela. A virtu é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtu alguma. Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em algumas, ser inflexível.
O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas. A fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferecese como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la. Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.
A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtu política. Em outras palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos.
O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder. Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só poderia ter sido visto como “maquiavélico”. As palavras maquiavélico e maquiavelismo, criadas no século XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza.
Para o Ocidente cristão do século XVI, o príncipe maquiavelista, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só poderia ser diabólico. À sacralização do poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam.
O mundo desordenado
A obra de Maquiavel, criticada em toda a parte, atacada por católicos e protestantes, considerada atéia e satânica, tornou-se, porém, a referência obrigatória do pensamento político moderno. A idéia de que a finalidade da política é a tomada e conservação do poder e que este não provém de Deus, nem da razão, nem de uma ordem natural feita de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação do poder. Em alguns casos, como na França e na Prússia, surgirá a teoria do direito divino dos reis, baseada na reformulação jurídica da teologia política do “rei pela graça divina” e dos “dois corpos do rei”.
Na maioria dos países, porém, a concepção teocrática não foi mantida e, partindo de Maquiavel, os teóricos tiveram que elaborar novas teorias políticas. Para compreendermos os conceitos que fundarão essas novas teorias precisamos considerar alguns acontecimentos históricos que mudaram a face econômica e social da Europa, entre os séculos XV e XVII. Já mencionamos, ao tratar do ideal republicano, o novo papel das cidades e da nova classe social – a burguesia – no plano econômico, social e político.
Outros fatores, além do crescimento das corporações de ofício e do comércio, são também importantes para o fortalecimento dessa nova classe:
? a decadência e ruína de inúmeras famílias aristocráticas, cujas riquezas foram consumidas nas guerras das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram abandonadas porque seus nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram sem deixar herdeiros. Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de armamentos e pagamentos de exércitos para as Cruzadas, suas terras sendo confiscadas pelo rei para cobrir as dívidas. Os servos da gleba, que trabalhavam nessas propriedades, bem como os camponeses pobres e livres, que as arrendavam em troca de serviços, migravam para as cidades, tornando-se membros das corporações de ofícios ou servos urbanos de famílias nobres que haviam passado a dedicar-se ao comércio;
? a decadência agrária foi acelerada também por uma grande peste que assolou a Europa no final da Idade Média – a chamada peste negra -, que dizimou gente, gado e colheitas, arruinando a nobreza fundiária e causando migrações para as cidades;
? a vida urbana provocou o crescimento de atividades artesanais e, com elas, o desenvolvimento comercial para compra e venda dos produtos, criando especialidades regionais e o intercâmbio comercial em toda a Europa;
? as grandes rotas do comércio com o Oriente, dominadas, primeiro, pelas cidades italianas e, depois, pelos impérios ultramarinos de Portugal, Espanha, Inglaterra e França, deram origem a um novo tipo de riqueza, o capital, baseado no lucro advindo da exploração do trabalho dos homens pobres e livres que haviam migrado para as cidades e na exploração do trabalho escravo de nativos e negros nas Américas. Nas cidades, primeiro, e no campo, depois, a miséria e as péssimas condições de trabalho e de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos.
No campo, tais revoltas foram um dos efeitos da Reforma Protestante, que acusara a Igreja e a nobreza de cometerem o pecado da ambição, explorando e oprimindo os pobres. Nas cidades, as revoltas populares eram também um efeito da Reforma Protestante, que havia declarado a igualdade dos seres humanos, afirmando como principal virtude o trabalho e principal vício a preguiça. O desenvolvimento econômico das cidades, o surgimento da burguesia comerciante ou mercantil, o crescimento da classe dos trabalhadores pobres, mas livres (isto é, sem laços de servidão com os senhores feudais), a Reforma Protestante que questionara o poder econômico e político da Igreja, as revoltas populares, a guerra entre potências pelo domínio dos mares e dos novos territórios descobertos, a queda de reis e de famílias da nobreza, a ascensão de famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os nobres, todos esses fatos evidenciavam que a idéia cristã, herdada do Império Romano e consolidada pela Igreja Romana, de um mundo constituído naturalmente por hierarquias era uma idéia que não correspondia à realidade.
A nova situação histórica fazia aparecer dois fatos impossíveis de negar:
1. a existência de indivíduos – um burguês e um trabalhador não podiam invocar sangue, família, linhagem e dinastia para explicar por que existiam e por que haviam mudado de posição social, mas só podiam invocar a si mesmos como indivíduos;
2. a existência de conflitos entre indivíduos e grupos de indivíduos pela posse de riquezas, cargos, postos e poderes anulava a imagem da comunidade cristã, una, indivisa e fraterna. Os teóricos precisavam, portanto, explicar o que eram os indivíduos e por que lutavam mortalmente uns contra os outros, além de precisarem oferecer teorias capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais. Em outras palavras, foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política. Por que indivíduos isolados formam uma sociedade? Por que indivíduos independentes aceitam submeter-se ao poder político e às leis?
A resposta a essas duas perguntas conduz às idéias de Estado de Natureza e Estado Civil.
Estado de Natureza, contrato social, Estado Civil O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais concepções do Estado de Natureza:
1. a concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar;
2. a concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.
O Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.
A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.
Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social. Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos.
Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado. A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro; e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania.
Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los. Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado.
Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado. A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade.
A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, compartilhando os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e possuindo um destino comum. A idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário, tornaremse sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos.
A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina; a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana. A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados.
Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contratos econômicos, isto é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.). Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta. Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática.
O fundamental não é o número de governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado.
O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens. Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral coletiva livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular.
Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil; aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.
A teoria liberal no pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão. De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam.
Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.
Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho. Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural?
 Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho.
Por isso, de origem divina, ela é um direito natural. O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade. O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres.
De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade. Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?
A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:
1. por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;
2. visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercalase uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;
 3. o Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.
Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.
Liberalismo e fim do Antigo Regime
As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do poder. O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, com a Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime.
Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor. Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de hierarquia. Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante.
O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem do rei como marido da terra, senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada, ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca.
O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos representantes dos proprietários privados. As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e propriedade).
O indivíduo é o cidadão.
Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade.
Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares. Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma certa renda ou riqueza. O Estado, através da lei e da força, tem o poder para dominar – exigir obediência – e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes.
A cidadania liberal
O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três poderes: o executivo (encarregado da administração dos negócios e serviços públicos), o legislativo (parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário (magistraturas de profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui um corpo de militares profissionais que formam as forças armadas – exército e polícia -, encarregadas da ordem interna e da defesa (ou ataque) externo. Possui também um corpo de servidores ou funcionários públicos, que formam a burocracia, encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos.
O Estado liberal julgava inconcebível que um não-proprietário pudesse ocupar um cargo de representante num dos três poderes. Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e independentes, queriam dizer com isso que eram dependentes e não-livres os que não possuíssem propriedade privada. Estavam excluídos do poder político, portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a maioria da sociedade. Lutas populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o Estado liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a cidadania política.
Com exceção dos Estados Unidos, onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII, nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir completamente no século XX, como conclusão de um longo processo em que a cidadania foi sendo concedida por etapas. Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais, Inglaterra e França, as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946, após a Segunda Guerra Mundial. Pode-se avaliar como foi dura, penosa e lenta essa conquista popular, considerando-se que, por exemplo, os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadãos nos anos 60 do século passado. Também é importante lembrar que em países da América Latina, sob a democracia liberal, os índios ficaram excluídos da cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994. As lutas indígenas, em nosso continente, e as africanas continuam até nossos dias.
A idéia de revolução
A política liberal foi o resultado de acontecimentos econômicos e sociais que impuseram mudanças na concepção do poder do Estado, considerado instituído pelo consentimento dos indivíduos através do contrato social. Tais acontecimentos ficaram conhecidos com o nome de revoluções burguesas, isto é, mudanças na estrutura econômica, na sociedade e na política, efetuadas por uma nova classe social, a burguesia. O uso da palavra revolução para designar tais mudanças é curioso.
De fato, essa palavra provém do vocabulário da astronomia, significando o movimento circular completo que um astro realiza ao voltar ao seu ponto de partida. Uma revolução se efetua quando o movimento total de um astro faz coincidirem seu ponto de partida e seu ponto de chegada.
Revolução designa movimento circular cíclico, isto é, repetição contínua de um mesmo percurso. Como entender que essa palavra tenha entrado para o vocabulário político significando mudanças e alterações profundas nas relações sociais e no poder? Como entender que, em vez de significar retorno circular e cíclico ao ponto de partida, signifique exatamente o contrário, isto é, percurso rumo ao tempo novo e à sociedade nova? Para responder a essas perguntas precisamos examinar um pouco mais de perto as revoluções burguesas, isto é, a Revolução Inglesa de 1644, a Revolução Norte Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.
Embora em todas elas o resultado tenha sido o mesmo, qual seja, a subida e consolidação política da burguesia como classe dominante, nas três houve o que um historiador denominou de “revolução na revolução”, indicando com isso a existência de um movimento popular radical ou a face democrática e igualitária da revolução, derrotada pela revolução burguesa.
Em outras palavras, nas três revoluções, a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza, passou a dominar o Estado e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças, enquanto as classes populares, que participaram daquela vitória, desejavam muito mais: desejavam instituir uma sociedade inteiramente nova, justa, livre e feliz. Ora, as classes populares não possuíam teorias políticas de tipo filosófico e científico. Para explicar o mundo em que viviam e o mundo que desejavam dispunham de uma única fonte: a Bíblia. Através da religião, possuíam duas referências de justiça e felicidade: a imagem do Paraíso terrestre (no Antigo Testamento) e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém (no Novo Testamento) que restauraria o Paraíso depois que Cristo viesse ao mundo pela segunda vez e, no fim dos tempos ou tempo do fim, derrotasse para sempre o Mal. As classes populares revolucionárias dispunham, portanto, de um imaginário messiânico e milenarista (milenarista porque o Reino de Deus na Terra duraria mil anos de felicidade, abundância e justiça).
Ao lutarem politicamente, as classes populares olhavam para o passado (o ponto de partida dos homens no Paraíso) e para o futuro (o ponto de chegada dos homens na Nova Jerusalém). Olhavam para o tempo futuro e novo – a sociedade dos justos na Terra -, que seria a restituição ou restauração do tempo passado original – o Paraíso. Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do movimento político coincidiam com a existência da justiça e da felicidade, o futuro e o passado se encontravam, fechando o ciclo e o círculo da existência humana, graças à ação do presente. Por isso, designaram os acontecimentos de que eram os sujeitos e protagonistas com a palavra revolução. Se compararmos os movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII com a teoria política liberal, notaremos uma diferença importante entre eles. De fato, as teorias liberais separam o Estado e a sociedade civil.
O primeiro aparece como instância impessoal de dominação (impõe obediência), de estabelecimento e aplicação das leis, como garantidor da ordem através do uso legal da violência para punir todo o crime definido pelas leis, e como árbitro dos conflitos sociais. A sociedade civil, por seu turno, aparece como um conjunto de relações sociais diversificadas entre classes e grupos sociais, cujos interesses e direitos podem coincidir ou opor-se. Nela existem as relações econômicas de produção, distribuição, acumulação de riquezas e consumo de produtos que circulam através do mercado.
O centro da sociedade civil é a propriedade privada, que diferencia indivíduos, grupos e classes sociais, e o centro do Estado é a garantia dessa propriedade, sem, contudo, mesclar política e sociedade. O coração do liberalismo é a diferença e a distância entre Estado e sociedade. Ora, as revoluções, e sobretudo a face popular das revoluções, operam exatamente com a indistinção entre Estado e sociedade, entre ação política e relações sociais.
As revoluções pretendem derrubar o poder existente ou o Estado porque o percebem como responsável ou cúmplice das desigualdades e injustiças existentes na sociedade. Em outras palavras, a percepção de injustiças sociais leva às ações políticas. Uma revolução pode começar como luta social que desemboca na luta política contra o poder ou pode começar como luta política que desemboca na luta por uma outra sociedade. Eis por que, em todas as revoluções burguesas, vemos sempre acontecer o mesmo processo: a burguesia estimula a participação popular, porque precisa que a sociedade toda lute contra o poder existente; conseguida a mudança política, com a passagem do poder da monarquia à república, a burguesia considera a revolução terminada; as classes populares, porém, a prosseguem, pois aspiram ao poder democrático e desejam mudanças sociais; a burguesia vitoriosa passa a reprimir as classes populares revolucionárias, desarma o povo que ela própria armara, prende, tortura e mata os chefes populares e encerra, pela força, o processo revolucionário, garantindo, com o liberalismo, a separação entre Estado e sociedade.
Significado político das revoluções.
Uma revolução, seja ela burguesa ou popular, possui um significado político da mais alta importância, porque desvenda a estrutura e a organização da sociedade e do Estado. Ela evidencia:
? a divisão social e política, sob a forma de uma polarização entre um alto opressor e um baixo oprimido;
? a percepção do alto pelo baixo da sociedade como um poder que não é natural nem necessário, mas resultado de uma ação humana e, como tal, pode ser derrubado e reconstruído de outra maneira;
? a compreensão de que os agentes sociais são sujeitos políticos e, como tais, dotados de direitos. A consciência dos direitos faz com que os sujeitos sociopolíticos exijam reconhecimento e garantia de seus direitos pela sociedade e pelo poder político. Eis por que toda revolução culmina numa declaração pública conhecida como Declaração Universal dos Direitos dos Cidadãos;
? pela via da declaração dos direitos, uma revolução repõe a relação entre poder político e justiça social, mas com uma novidade própria do mundo moderno, pois a justiça não depende mais da figura do bom governo do príncipe virtuoso, e sim de instituições públicas que satisfaçam à demanda dos cidadãos ao Estado. Cabe ao novo poder político criar instituições que possam satisfazer e garantir a luta revolucionária por direitos.
As revoluções sociais
Acabamos de ver que as revoluções modernas possuem duas faces: a face burguesa liberal (a revolução é política, visando à tomada do poder e à instituição do Estado como república e órgão separado da sociedade civil) e a face popular (a revolução é política e social, visando à criação de direitos e à instituição do poder democrático que garanta uma nova sociedade justa e feliz). Vimos também que, nas revoluções modernas, a face popular é sufocada pela face liberal, embora esta última seja obrigada a introduzir e garantir alguns direitos políticos e sociais para o povo, de modo a conseguir manter a ordem e evitar a explosão contínua de revoltas populares. A face popular vencida não desaparece. Ressurge periodicamente em lutas isoladas por melhores condições de vida, de trabalho, de salários e com reivindicações isoladas de participação política. Essa face popular tende a crescer e manifestar-se em novas revoluções (derrotadas) durante todo o século XIX, à medida que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares se tornam uma classe social de perfil muito definido: os proletários ou trabalhadores industriais.
Correspondendo à emergência e à definição da classe trabalhadora proletária e à sua ação política em revoluções populares de caráter político-social, surgem novas teorias políticas: as várias teorias socialistas.
As teorias socialistas tomam o proletariado como sujeito político e histórico e procuram figurar uma nova sociedade e uma nova política na qual a exploração dos trabalhadores, a dominação política a que estão submetidos e as exclusões sociais e culturais a que são forçados deixem de existir.
Porque seu sujeito político são os trabalhadores, essas teorias políticas tendem a figurar a sociedade futura como igualitária, feita de abundância, justiça e felicidade. Como percebem a cumplicidade entre o Estado e a classe economicamente dominante, julgam que a existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da burguesia e por isso afirmam que, na sociedade futura, quando não haverá divisão social de classes nem desigualdades, a política não dependerá do Estado. São, portanto, teorias antiestatais, que apostam na capacidade de autogoverno ou de autogestão da sociedade.

Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000

3º Ano / 4º Bim.


O UNIVERSO DAS ARTES

Alberto Caeiro é um dos heterônimos de Fernando Pessoa e é incrível como neste poema:
O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o Costume de andar pelas estradas
Olhando para direita e para esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo podemos encontrar suficientes caminhos de descobrimento para significações da arte principalmente entendendo o olhar do artista que realmente nasce a cada momento, a cada criação; e este nascimento é para o momento, novo; ao mesmo tempo em que é, eterno. Fernando Pessoa criou vários personagens e este Alberto Caeiro nos mostra com sua filosofia simples que coisas aparentemente distintas caminham mais íntimas que possamos imaginar.
Ora se arte não é novidade/eternidade; eternidade/novidade? O artista a cada momento transforma-se, recicla-se sempre em busca do novo em si mesmo e essa busca é na verdade também em algo que existe desde sempre e que nunca deixará de existir, ou seja, é eterno. A autora exemplifica citando Monet que pinta a mesma catedral e na verdade a “mesma” não existe, pois a cada catedral pintada, uma nova catedral nasce e posso citar o poeta paraense Max Martins que hoje em dia já não mais cria ou cria muito pouco, porém, refaz, reescreve muito mais, conserta, reorganiza poemas outrora escritos.
Então podemos concluir que dentro da arte o eterno e o novo se fazem em um só e “o que há de espantoso nas artes é que elas realizam o desvendamento do mundo recriando o mundo noutra dimensão e de tal maneira que a realidade não está aquém e nem na obra, mas é a própria obra de arte”. O homem faz arte também no intuito de descobrir o mundo e o faz descobrindo a si mesmo. Se conhecer também é o caminho para a evolução.
Arte e Técnica
Ainda pouco vimos que eterno e novo são distintos e ao mesmo tempo semelhantes. Quando nos propomos a entender Arte e Técnica vimos também percebemos semelhanças e diferenças entre ambas. Podemos dizer que um médico tem a arte de curar, a arte médica e podemos ainda dizer que este médico é técnico em curar, a técnica médica, mas, examinado com mais cautela já percebemos alguma diferença: a minha impressão é que técnica é o aprofundamento da arte. O médico se forma em medicina e se especializa em algum ramo da medicina, ou seja, se especializa, se torna técnico em tal área. Na verdade nos dias atuais, muita coisa mudou não só quanto a esses termos, mas também como a arte médica, hoje, caminho para quem quer ter estabilidade no futuro sem muitas vezes, ter a capacidade médica, a arte médica, a técnica médica. O que pode nos auxiliar no entendimento é justamente ir de encontro às origens destas palavras, o que Marilena Chauí faz questão de esclarecer:
Ars: Arte em Latim que é correspondente ao termo grego techne que para nós significa técnica. No sentido lato, significa habilidade, desteridade, agilidade. Em sentido estrito, instrumento, ofício, ciência. Seu campo semântico se define por oposição ao acaso, ao espontâneo e ao natural. No sentido mais geral, arte é um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer. É justamente por isso que citei o exemplo médico, mas poderíamos citar inúmeros como o faz Chauí: arte política, arte bélica. Retórica, lógica, poética etc. Porém podemos também examinar arte e técnica pelo viés da música. Ora, um músico pode ter a arte de tocar, mas pode não ter a técnica e do contrário também, neste caso, ocorre.
Platão não distinguia arte, ciências e filosofia, uma que estas são atividades regradas e ordenadas, como a arte o é. A divisão platônica “era feita de dois tipos: as judicativas, isto é, dedicadas apenas ao conhecimento, e as dispositivas ou imperativas, voltadas para a direção de uma atividade com base no conhecimento de suas regras”. O que percebemos é que há complementações nas idéias platônicas, pois Aristóteles já estabelece uma outra perspectiva que perdura durante muito tempo na cultura ocidental. Ciência-Filosofia distingue-se de arte ou técnica: “a primeira refere-se ao NECESSÁRIO, isto é, ao que não pode ser diferente do que é, enquanto a segunda se refere ao CONTINGENTE ou ao POSSÍVEL, portanto, ao que se pode ser diferente do que é. Outra distinção é feita no próprio campo do possível, pela diferença entre ação e fabricação, isto é, entre PRÁXIS e POIESIS. A política e a ética são ciência da ação enquanto artes ou técnicas são atividades de fabricação”.
Para completar a distinção Plotino separa teoria e prática e distingue também as técnicas ou artes cuja finalidade é auxiliar a natureza como medicina e agricultura daquelas cuja finalidade é fabricar como as matérias oferecidas pela natureza como o artesanato. Também as artes ou técnicas que não se relacionam diretamente com a natureza como música e retórica, por exemplo, que, tendo efeito principal no indivíduo tornando melhor ou pior.
O que nos chama atenção é que essa formação ou classificação da arte ou técnica venha se formar nas sociedades antigas, justamente nas sociedades em que não era valorizado o trabalho manual justamente por ser feito pela mão-de-obra escrava. Outro aspecto interessante é que para cada época da história humana, encontra-se uma divisão quanto às artes e/ou as técnicas. Por exemplo, até o século XV, as artes são divididas entre artes liberais (dignas de um homem livre) e servis ou mecânicas (própria do trabalhador manual).
Durante a Idade Média, Santo Tomás de Aquino justifica a diferença entre as artes que dirigem os trabalhos com a razão e as que dirigem os trabalhos com as mãos e assim, baseando-se nisso, institui que as artes liberais são: gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia, e música. Sendo artes mecânicas todas as atividades técnicas: medicina, arquitetura, agricultura, pintura, escultura, olaria, tecelagem etc. Ficam as perguntas: Um artista que usa as mãos não utiliza a razão e vice-versa? É interessante observar que nos dias atuais o termo profissional liberal é justamente o oposto do que era ser liberal Idade Média.
Na Renascença, porém, há uma busca pela valorização do trabalho manual, ou seja, pelas artes mecânicas que tinha até aquele momento um status diferente, inferior ao das artes liberais e esta valorização não passa de interesse econômico tendo em vista que o capitalismo começara a dar seus primeiros passos e as fontes e causas das riquezas vinham do trabalho manual. A primeira dignidade obtida pelas artes mecânicas foi sua elevação à condição de conhecimento, como as artes liberais. A segunda dignidade foi alcançada no final do século XII e a partir do século XIII, quando se distinguiram as finalidades das várias artes mecânicas, isto é, as que têm como fim o que é útil aos homens – medicina, agricultura, culinária, artesanato – e aquelas cujo fim é o BELO – pintura, escultura, arquitetura, poesia, música, teatro dança. Desse modo, com a idéia de beleza surgem as belas artes, modo pelo qual nos acostumamos a entender a arte. Daí em diante a distinção entre as artes acarretou uma separação entre técnica (o útil) e arte (o belo). O que criou uma forte imagem da sensibilidade e da fantasia do artista como gênio-criador. “Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras e receitas vindas da tradição ou da ciência, o artista é visto como dotado de INSPIRAÇÂO, entendida como uma espécie de iluminação interior e espiritual misteriosa, que leva o gênio a criar a obra”.
Emmanuel Kant viria estudar amplamente o juízo de gosto, conceito que surgira a partir da conclusão de que a obra de arte é pensada a partir de sua finalidade – a criação do belo – onde podemos observar inseparável da figura do público (espectador, ouvinte, leitor), que julga e avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado a beleza. E é justamente essas discussões do belo, da beleza, do gosto do público, do lado da obra, do gênio criador, inspiração que vêm ser os pilares da construção e uma disciplina filosófica: a estética. Todavia, desde o final do século XIX e durante o século XX, modificou-se a relação entre arte e técnica. Na verdade conceitos também mudaram e, por exemplo, técnica deu espaço à tecnologia e também por outro lado as artes passaram a ser concebidas menos como expressão genial misteriosa e mais como expressão criadora como transfiguração das possibilidades de cada linguagem artística como o movimento, do visível, do sonoro etc.
Para expressarem-se os artistas recorrem às técnicas, como sempre o fizeram apesar daquela imagem de gênio criador inspirado, que tira de dentro de si a obra.
Arte e Religião
Historicamente, o trabalho e a religião desempenharam papéis fundamentais para humanidade no sentido de sua organização como sociedade, sendo que, o trabalho traz noções de vida em comunidade e a religião noções de autoridade esta sociabilidade proporcionada por ambos instituem também símbolos de organização quanto ao espaço/tempo, corpo/espírito. Com isso, as artes, tanto mecânicas quanto técnicas tornam-se inseparáveis do trabalho e da religião.
Na verdade essa relação com o sagrado que organiza o espaço e o tempo e ainda o sentimento da comunhão, também separa o Homem e Natureza e deles com o divino simbolizam o todo da realidade pela sacralização, ou seja, as atividades humanas assumem formas ritualísticas como, por exemplo, doença e cura, nascimento e morte, mudança de estações, a semeadura e a colheita, a passagem do dia à noite etc.
Por muito tempo então, se têm arte como atividades técnico-religiosas, pois pintar, edificar, cozinhar, caçar, plantar, assumem as mesmas características de ritos, sendo assim, tidas como iguais tendo em vista que o trabalho e a religião tendem sacralizar e ritualizar a vida. Serão ainda necessários alguns anos e profundas transformações histórico-sociais para as belas artes, como hoje conhecemos, tornarem-se independentes, dotadas de valor, autonomia e significações próprias.
O interessante é que antes de acontecer de fato, esta “emancipação” das linguagens, os artistas eram tidos também como “magos”, devido o conhecimento em diversas áreas como nas combinações médico/astrólogo/músico ou arquiteto/dançarino/escultor – tão raras quanto atuais – pois eram iniciados em mistérios, ou seja, em um rito sagrado. Aprendia-se a conhecer a matéria prima para uma determinada arte e manusear os instrumentos necessários para sua criação. A dimensão religiosa das artes deu objetos artísticos ou às obras de arte uma qualidade que foi estudada pelo filósofo alemão Walter Benjamim: a aura. Mas o que é a aura?
“A aura é a absoluta singularidade de um ser – natural ou artístico –, sua qualidade de eternidade e fugacidade simultâneas, seu pertencimento necessário ao contexto onde se encontra e sua autenticidade, o vínculo interno entre unidade e durabilidade. Única, uma, irrepetível, duradoura e efêmera, aqui-agora e parte de uma tradição, autêntica: a obra de arte aurática é aquela que torna distante o que está perto, porque transfigura a realidade, dando-lhe a qualidade da transcendência”. O que mais fascina na obra de Walter Benjamim é sua capacidade de exemplificar de maneira simples, suas idéias. Em seu ensaio intitulado “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” escreve: “Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos especiais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho”. Na verdade voltamos ao início quando vimos na unidade do eterno e do novo, pois a aura é também o momento que é singular, é novo e é eterno.
Marilena Chauí conclui o texto complementando e esclarecendo e justificando o fato de o artista ser considerado, outrora, como gênio criador, mágico. Justamente por entender-se que as significações e características de arte em cada momento histórico não tiram sua essência, que é a capacidade e a possibilidade de criação e interpretação: “Passando do divino ao belo, as artes não perderam o que a religião lhes dera: a aura. Não por acaso, o artista foi visto como gênio criador inspirado, indivíduo excepcional que cria uma obra excepcional, isto é, manteve em sua figura o mistério do mágico antigo”.
Arte e Filosofia
Poética e Estética. É o que separa em momentos pelo qual a filosofia teorizou e buscou compreender a arte racionalmente. No primeiro momento inaugurado por Platão e Aristóteles, onde tratam as artes sob a forma da poética. Na obra aristotélica Arte Poética o pensador grego trata das artes da fala e da escrita, do canto e da dança: a poesia e o teatro (tragédia e comédia). A palavra poética é a tradução de poiesis, portanto, para a fabricação. A arte poética estuda as obras de arte como fabricação de seres e gestos artificiais, isto é, produzido pelos seres humanos.
No segundo momento conhecemos Estética, termo utilizado pela primeira vez – para referir-se às artes quanto ao estudo das obras enquanto criações da sensibilidade, tendo como finalidade o belo – por Alexander Baumgarten por volta de 1750 que vem do grego aesthesis, que significa conhecimento sensorial, experiência, sensibilidade. A Estética pouco a pouco substitui a noção de arte Poética e passa a designar toda a investigação filosófica que tenha por objeto as artes, uma arte ou ainda, determinadas obras de arte. Do lado do artista e da obra, busca-se a realização da beleza; do lado do espectador e receptor, busca-se a reação sob a forma do juízo de gosto, do bom gosto.
A noção de estética, quando formulada e desenvolvida nos séculos XVIII e XIX, pressupunha:
1 – que a arte é produto da sensibilidade, da imaginação e da inspiração do artista e que sua finalidade é a contemplação;
2 – que a contemplação, do lado do artista, é a busca do belo (e não do útil, nem do agradável ou prazeroso) e, do lado do público, é a avaliação ou o julgamento do valor de beleza atingido pela obra;
3 – que o belo é diferente do verdadeiro.
Relação entre arte e natureza
A arte é mimésis, ou seja, imitação. “A arte imita a natureza” defende Aristóteles e segundo o que escreve o pensador, resulta da atividade do artista imitar outros seres por meio de imagens, sons, cores, formas, volumes etc., e o valor da obra decorre da habilidade do artista para encontrar materiais e formas adequados para obter o efeito imitativo.
O que na verdade não podemos confundir é imitação com reprodução, pois há uma linha, ainda que tênue, que separa as duas. Imitar mais assemelha então a representar a realidade para que “a obra figure algum ser (natural ou sobrenatural), algum sentimento ou emoção, algum fato (acontecido ou inventado). Harmonia e proporção das formas, dos ritmos, das cores, das palavras ou dos sons oferecem a finalidade a ser alcançada e estabelecem as regras a serem seguidas”.
A partir do romantismo (portanto, após quase 23 séculos de definição de arte como imitação), a filosofia passa definir obra de arte como criação. E a idéia de inspiração torna explicadora da atividade artística. A terceira concepção, mais contemporânea, vê a arte como expressão e construção. “A obra de arte não é pura receptividade imitativa ou reprodutiva, nem pura criatividade espontânea e livre, mas expressão de um sentido novo, escondido no mundo, eu um processo de construção do objeto artístico, em que o artista colabora com a natureza, luta com ela ou contra ela, separa-se dela ou volta a ela, vence a resistência dela ou dobra-se às exigências dela”. Essa concepção corresponde ao momento da sociedade ao momento da sociedade industrial, da técnica transformada em tecnologia e da ciência como construção rigorosa do real. “Arte é trabalho da expressão que constrói um sentido novo (a obra) e o institui como parte da cultura”.
O artista é um ser social que reflete na sociedade, para a sociedade, pela sociedade seja para criticá-la, para afirmá-la ou ainda para superá-la e o faz exprimindo-se, expressando-se, comunicando-se através de seu modo de estar no mundo na companhia de outros seres humanos.
Relação entre arte e humano
Também é na Grécia que iniciam as discussões referentes à relação entre o humano/arte/humano. Platão considera a arte conhecimento e essa concepção logo vem ser alterada por Aristóteles, que também sofrerá mudanças no decorrer da história, que considera a arte como atividade prática. Para Platão a arte está no mundo mais baixo do conhecimento, pois, considera imitação das coisas sensíveis sendo elas próprias imitações imperfeitas. Na Renascença, porém, o conceito de Platão volta à tona, mas com um novo sentido: e o que é afirmado então é que a “a arte uma forma alta de acesso ao conhecimento ficando abaixo apenas da filosofia e do êxtase místico”. Essa mudança se deve principalmente porque na Renascença redescobrem-se os escritos Hermético em que diz que o Deus criou o Homem dotado de criatividade o que lhe dá acesso ao conhecimento das formas secretas das coisas. E é justamente no Romantismo é que a arte como expressão encontra seu apogeu quando é concebida como o “órgão geral da filosofia”, sob três aspectos diferentes: para alguns, a arte é a única via de acesso ao universal e ao absoluto; para outros, como Hegel, as artes são a primeira etapa da vida consciente do Espírito, preparando a religião e a filosofia; e outros, enfim, a concebem como o único caminha para reatar o singular e o universal, o particular e o geral, pois, através da singularidade de uma obra artística, temos acesso ao significado universal de alguma realidade. Essa última perspectiva é a que encontramos, por exemplo, no filósofo Martin Heidegger, para quem a obra de arte é desvelamento e desvendamento da verdade.
Funalidades-funções da arte
Na história das artes nos deparamos com duas concepções ligadas às finalidades artística: a concepção pedagógica e a expressiva. Novamente, porém, vamos encontrar raízes profundas na Grécia Antiga onde Platão e Aristóteles encontram formulações: Platão, na República defende que a cidade perfeita é aquela onde são excluídos poetas, pintores e escultores porque “imitam as coisas sensíveis e oferecem uma imagem desrespeitosas dos deuses, tomados pelas paixões humanas; porém, coloca dança e música como disciplinas fundamentais na formação do corpo e da alma”. Aristóteles, na Arte poética, desenvolve de maneira aprofundada o papel pedagógico das artes onde especialmente a tragédia que segundo o filósofo, tem a função de produzir a catarse, ou seja, a purificação espiritual dos espectadores além de proporcionar a comoção e o horror. Essa função catártica é atribuída sobretudo à música. Na Arte poética Aristóteles escreve: A música não deve ser praticada por um só tipo de benefício que dela pode derivar, mas por usos múltiplos, já que pode servir para a educação, para proporcionar a catarse e, em terceiro lugar, para o repouso da alma e a suspensão de sua fadigas. A autora faz então uma ligação entre Aristóteles e Shakespeare quando lemos em O mercador de Veneza ouvimos, segundo Chauí, o ecoar das palavras do filósofo grego:
Todo homem que em si não traga a música
E a quem não toquem doces sons concordes,
É de traições, pilhagens, armadilhas.
Seu espírito vive em noite obscura,
Seus afetos são negros como o Érebo:
Não se confie em homem tal...
A concepção pedagógica da arte reaparece em Kant quando afirma que “a função mais alta da arte é produzir o sentimento do sublime”
Arte e sociedade
As mudanças ou transformações sofridas pelas artes se vistas de maneira mais cuidadosa e atenciosa, mostram que na verdade essas mudanças/transformações, ocorrem apenas de dois tipos: as alterações quanto ao fazer artístico diferenciando-se em escolas de arte conhecidas também como estilos artísticos como pro exemplo o barroco, clássico, romântico, impressionista, futurista, surrealista etc.
As primeiras discussões sobre arte e sociedade trouxeram duas vertentes filosóficas opostas: a primeira afirma que arte só arte se for pura, ou seja, se não estiver compromissada com interesses de outras naturezas que não sejam artísticos como a política, a economia, a história. Trata-se portanto da defesa da “arte pela arte”. A outra vertente defende uma arte engajada, na qual o artista toma posição diante da sociedade e encara o seu ofício como maneira prática de lutar em benefício da sociedade auxiliando na transformação e melhoria da realidade.

Diferença entre Arte e Estética:
Arte: vem do latim ARS e significa TALENTO / SABER FAZER. Hegel define a Arte como "o meio entre a insuficiente existência objetiva e a representação puramente interior: ela nos fornece os objetos mesmos, mas tirados do interior... limita nosso interesse à abstrata aparência que se apresenta a um olhar puramente contemplativo".
Estética: vem do grego AISTHETIKÓS e significa PERCEBER / SENTIR. O termo "estética" foi criado por Baumgarten no séc. XVIII para designar o estudo da sensação, "a ciência do belo", referindo-se a empiria do gosto subjetivo, àquilo que agrada aos sentidos, mas elaborando uma ontologia do belo.

Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

1º Ano / 4º Bim.


A LINGUAGEM

A importância da linguagem
Na abertura da sua obra Política, Aristóteles afirma que somente o homem é um "animal político", isto é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros animais, escreve Aristóteles, possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes.
Segue a mesma linha o raciocínio de Rousseau no primeiro capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas:
A palavra distingue os homens dos animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado.
Escrevendo sobre a teoria da linguagem, o linguista Hjelmslev afirma que "a linguagem é inseparável do homem, segue-o em todos os seus atos", sendo "o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana."
Prosseguindo em sua apreciação sobre a importância da linguagem, Rousseau considera que a linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação:
Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isso.
Gestos e vozes, na busca da expressão e da comunicação, fizeram surgir a linguagem.
Por seu turno, Hjelmslev afirma que a linguagem é "o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador."
A linguagem, diz ele, está sempre à nossa volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos, acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do pensamento, "mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento", é "o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de geração a geração".
A linguagem é, assim, a forma propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes.
No entanto, no diálogo Fedro, Platão dizia que a linguagem é um pharmakon. Esta palavra grega, que em português se traduz por poção, possui três sentidos principais: remédio, veneno e cosmético.
Ou seja, Platão considerava que a linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo diálogo e pela comunicação, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros. Pode, porém, ser um veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar, fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais palavras são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser cosmético, maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras. A linguagem pode ser conhecimento-comunicação, mas também pode ser encantamento-sedução.
Essa mesma ideia da linguagem como possibilidade de comunicação-conhecimento e de dissimulação-desconhecimento aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre de Babel [Gn 11.1-9], quando Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos e guerras. A pluralidade das línguas é explicada, na Escritura Sagrada, como punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que alcançasse o céu, isto é, ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar semelhante ao da divindade. "Que sejam confundidos", disse Deus.
A força da linguagem
Podemos avaliar a força da linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões.
A palavra grega mythos, como já vimos, significa narrativa e, portanto, linguagem. Trata-se da palavra que narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas (o fogo, a agricultura, a caça, a pesca, o artesanato, a guerra) e da vida do grupo social ou da comunidade. Pronunciados em momentos especiais – os momentos sagrados ou de relação com o sagrado -, os mitos são mais do que uma simples narrativa; são a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e a interpretam.
O mito tem o poder de fazer com que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. O melhor exemplo dessa força criadora da palavra mítica encontra-se na abertura da Gênese, na Bíblia judaico-cristã, em que Deus cria o mundo do nada, apenas usando a linguagem: "E Deus disse: faça-se!", e foi feito. Porque Ele disse, foi feito. A palavra divina é criadora.
Também vemos a força realizadora ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas. Por exemplo, na missa cristã, o celebrante, pronunciando as palavras "Este é o meu corpo" e "Este é o meu sangue", realiza o mistério da Eucaristia, isto é, a encarnação de Deus no pão e no vinho. Também nos rituais indígenas e africanos, os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas palavras corretas, pronunciadas pelo celebrante.
A linguagem tem, assim, um poder encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano, trazer os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo, ou, como acontece com os místicos em oração, tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado. Eis por que, em quase todas as religiões, existem profetas e oráculos, isto é, pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divinas aos humanos.
Esse poder encantatório da linguagem aparece, por exemplo, quando vemos (ou lemos sobre) rituais de feitiçaria: a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas acontecerem pelo simples fato de, em circunstâncias certas, pronunciarem determinadas palavras. É assim que, nas lendas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino das guerras, pronunciando palavras especiais dotadas de poder. Também nos contos infantis há palavras poderosas ("Abre-te, Sésamo!", "Shazam!") e encantatórias ("Abracadabra"). Essa dimensão maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta Federico Fellini no filme Oito e Meio, quando a personagem adulta pronuncia as palavras "Asa Nisa Nasa", trazendo de volta o passado.
As palavras assumem o poder contrário também, isto é, criam tabus. Ou seja, há coisas que não podem ser ditas porque, se forem, não só trazem desgraças, como ainda desgraçam quem as pronunciar. As palavras-tabus existem nos contextos religiosos de várias sociedades (por exemplo, em muitas sociedades não se deve pronunciar a palavra "demônio" ou "diabo", porque este aparece; em vez disso se diz "o cão", "o demo", "o tinhoso"). As palavras-tabus não existem apenas na esfera religiosa, mas também nos brinquedos infantis, quando certas palavras são proibidas a todos os membros do grupo, sob pena de punição para quem as pronunciar.
Existem, ainda, palavras-tabus na vida social, sob os efeitos da repressão dos costumes, sobretudo os que se referem a práticas sexuais. Assim, para certos grupos sociais de nossa sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira, até os anos 60 do século passado, eram proibidas palavras como puta, homossexual, aborto, amante, masturbação, sexo oral, sexo anal, etc. Tais palavras eram pronunciadas em meios masculinos e em locais privados ou íntimos. Também palavras de cunho político tendem a tornar-se quase tabus: revolucionário, terrorista, guerrilheiro, socialista, comunista, etc.
O poder mágico-religioso da palavra aparece ainda num outro contexto: o do direito. Na origem, o direito não era um código de leis referentes à propriedade (de coisas ou bens, do corpo e da consciência), nem referentes à vida política (impostos, constituições, direitos sociais, civis, políticos), mas era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz.
O direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em litígio. Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Donde as expressões "Dou minha palavra" ou "Ele deu sua palavra", para indicar o juramento feito e a "palavra empenhada" ou "palavra de honra". É por isso também que, até hoje, nos tribunais, se faz o(a) acusado(a) e as testemunhas responderem à pergunta: "Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade?", dizendo: "Juro". Razão pela qual o perjúrio – dizer o falso, sob juramento de dizer o verdadeiro – é considerado crime gravíssimo.
Nas sociedades menos complexas do que a nossa, isto é, nas sociedades que são comunidades, onde todos se conhecem pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência, a palavra dada e empenhada é suficiente, pois, quando alguém dá sua palavra, dá sua vida, sua consciência, sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito com a morte ou com o acordo da outra parte. É por isso que, nos casamentos religiosos, em que os noivos fazem parte da comunidade, basta que digam solenemente ao celebrante "Aceito", para que o casamento esteja concretizado.
Independentemente de acreditarmos ou não em palavras místicas, mágicas, encantatórias ou tabus, o importante é que existam, pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem. Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco.
A outra dimensão da linguagem
Para referir-se à palavra e à linguagem, os gregos possuíam duas palavras: mythos e logos. Diferentemente do mythos, logos é uma síntese de três palavras ou idéias: fala/palavra, pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra racional do conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e necessários entre os seres).
É a palavra-pensamento compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a palavra-pensamento de alguma coisa: o "logia" que colocamos no final de palavras como cosmologia, mitologia, teologia, ontologia, biologia, psicologia, sociologia, antropologia, tecnologia, filologia, farmacologia, etc.
Do lado do logos desenvolve-se a linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras, agora, são conceitos ou ideias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade.
Essa dupla dimensão da linguagem (como mythos e logos) explica por que, na sociedade ocidental, podemos comunicar-nos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e opostos: o da palavra solene, mágica, religiosa, artística, e o da palavra leiga, científica, técnica, puramente racional e conceitual. Não por acaso, muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se torna científico quando uma explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica cede lugar a uma explicação conceitual, causal, metódica, demonstrativa, racional.
A origem da linguagem
Durante muito tempo a Filosofia preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem.
Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens (existe por natureza) ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão levou, séculos mais tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais. Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna, passando a funcionar como se fosse algo natural, isto é, como algo que possui suas leis e princípios próprios, independentes dos sujeitos falantes que a empregam.
Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por imitação, isto é, os humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza (dos animais, dos rios, das cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos, etc.). A origem da linguagem seria, portanto, a onomatopéia ou imitação dos sons animais e naturais;
2. a linguagem nasce por imitação dos gestos, isto é, nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o gesto indica um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos;
3. a linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a necessidade de reunir-se em grupo para defender-se das intempéries, dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras, formando um vocabulário elementar e rudimentar, que, gradativamente, tornou-se mais complexo e transformou-se numa língua;
4. a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando novamente Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas:
Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.
Assim, a linguagem, nascendo das paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a pintura nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos.
Essas teorias não são excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão, e os estudos de Psicologia Genética (isto é, da gênese da percepção, imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças) mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se. Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de significação, ou quando passa do expressivo ao significativo. Um gesto ou um grito exprimem, por exemplo, medo; palavras, frases e enunciados significam o que é sentir medo, dão conteúdo ao medo.
O que é a linguagem?
A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e para a expressão de ideias, valores e sentimentos. Embora tão simples, essa definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos têm-se ocupado desde há muito tempo. Essa definição afirma que:
1. a linguagem é um sistema, isto é, uma totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que pode ser conhecido;
2. a linguagem é um sistema de sinais ou de signos, isto é, os elementos que formam a totalidade lingüística são um tipo especial de objetos, os signos, ou objetos que indicam outros, designam outros ou representam outros. Por exemplo, a fumaça é um signo ou sinal de fogo, a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida, manchas na pele de um determinado formato, tamanho e cor são signos de sarampo ou de catapora, etc. No caso da linguagem, os signos são palavras e os componentes das palavras (sons ou letras);
3. a linguagem indica coisas, isto é, os signos linguísticos (as palavras) possuem uma função indicativa ou denotativa, pois como que apontam para as coisas que significam;
4. a linguagem tem uma função comunicativa, isto é, por meio das palavras entramos em relação com os outros, dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos, ensinamos e aprendemos, etc.;
5. a linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e de expressão, sendo neste caso conotativa, ou seja, uma mesma palavra pode exprimir sentidos ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a emprega, do sujeito que a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do contexto em que é usada. Assim, por exemplo, a palavra água, se for usada por um professor numa aula de química, conotará o elemento químico que corresponde à fórmula H2O; se for empregada por um poeta, pode conotar rios, chuvas, lágrimas, mar, líquido, pureza, etc.; se for empregada por uma criança que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede.
A definição nos diz, portanto, que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa.
No entanto, essa definição não nos diz várias coisas. Por exemplo, como a fala se forma em nós? Por que a linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias (internas ao pensamento)? Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista, pelo filósofo, pelo poeta ou pelo político? Como a linguagem pode ser fonte de engano, de mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se passa exatamente quando dialogamos com alguém? O que é escrever? E ler? Como podemos aprender uma outra língua?
Na resposta a várias dessas perguntas, vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos a razão, a verdade, a percepção ou a imaginação, qual seja, a diferença entre empiristas e intelectualistas.
Empiristas e intelectualistas diante da linguagem
Para os empiristas, a linguagem é um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que constituem imagens verbais (as palavras).
As imagens corporais são de dois tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando, graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer a grafia dos sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em função da frequência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial. A palavra ou imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.
O que levou a essa concepção empirista da linguagem foi o estudo médico de "perturbações da linguagem": a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras); a surdez verbal (ouvir as palavras sem conseguir compreende-las) e a cegueira verbal (ler sem conseguir entender).
Os médicos que estudaram essas perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que, portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual não temos consciência (desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o sentido das palavras. A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.
Os intelectualistas, porém, apresentam uma concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a possibilidade para falar, ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia e fisiologia) afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é apenas a tradução auditiva, oral, gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para transmitir e comunicar ideias abstratas e valores. A palavra, dizem eles, é uma representação de um pensamento, de uma ideia ou de valores, sendo produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade.
O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que o pensamento procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas, porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e tal sentido é a ideia formada pelo pensamento para representar ou indicar as coisas.
A grande prova dos intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida cega, surda e muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais, Helen Keller jamais teria chegado à linguagem.
Mas chegou. E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água; quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos.
As concepções empirista e intelectualista, apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos linguísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas;
2. ambas consideram a linguagem como um instrumento de representação das coisas e das ideias, ou seja, as palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo.
Esses dois pontos de concordância fazem com que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos conotativos ou a função conotativa da linguagem seja considerada algo perturbador e negativo. Em outros termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado perturbador porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e as ideias são sempre o que elas são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para indicar claramente as coisas e representar claramente as ideias.
Por esse motivo, periodicamente, aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em "purificar" a linguagem para que ela sirva docilmente às representações conceituais. Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e, particularmente, a da matemática e a da física.
Purificar a linguagem
Uma dessas correntes filosóficas desenvolveu-se no século passado com o nome de positivismo lógico. Os positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
1. a linguagem natural, isto é, aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa, confusa, mescla de elementos afetivos, volitivos, perceptivos e imaginativos;
2. a linguagem lógica, isto é, uma linguagem purificada, formalizada (ou seja, com enunciados sem conteúdo e avaliadores do conteúdo das linguagens científicas e filosóficas), inspirada na matemática e sobretudo na física.
Essa linguagem obedecia a princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações chamadas cálculos simbólicos (semelhantes às operações da matemática), que permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se ênfase à sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade representativa e indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.
A linguagem lógica era uma metalinguagem, isto é, uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros ou falsos. Assim, por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos: "O livro é de autoria de José Antônio Silva" e, na metalinguagem lógica, diremos: "A proposição ‘O livro é de autoria de José Antônio Silva’ é uma proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x, y, z".
No entanto, descobriu-se, pouco a pouco, que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo nem representativo, e, apesar disto, eram verdadeiras. Descobriu-se também que havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados lógicos e tipo matemático e físico. Descobriu-se, ainda, que a linguagem usa certas expressões para as quais não existe denotação. Por exemplo, as preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade.
Além disso, descobriu-se que a redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia, a literatura, a história, bem como várias ciências humanas, isto é, todas as linguagens que são profundamente conotativas, para as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das coisas é sua própria razão de ser.
Crítica ao empirismo e ao intelectualismo
As concepções empiristas e intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no campo da psicologia.
Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas. Por exemplo, ordena-se a um afásico: "Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que você encontrar nesta caixa". O afásico inicia a separação. Ao encontrar uma fita azul-claro ele a coloca na pilha das fitas azuis, conforme lhe foi dito, mas também passa a colocar ali fitas verde-claro, rosa-claro e lilás-claro.
Os dois psicólogos observaram, assim, que a palavra azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o afásico e que, portanto, seu problema de linguagem era também um problema de pensamento. No entanto, do ponto de vista cerebral ou anatômico, a parte do cérebro destinada à inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso, compreendeu-se que os empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um mero conjunto de imagens verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da realidade e inseparável do pensamento.
Esses estudos, porém, não reforçaram a concepção intelectualista, como poderíamos supor. De fato, basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras, não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem pensamentos, mas os envolvem e os englobam. É justamente por isso que a criança aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo, pois, para ela, uma coisa se torna conhecida e pensável ao receber um nome. Como escreveu Merleau-Ponty, a linguagem é o corpo do pensamento.
A linguística e a linguagem
Durante o século XIX, o estudo da linguagem ou linguística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem e das línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua como resultado ou efeito de causas situadas no passado.
A linguagem era estudada sob duas perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo estudo das raízes, com o propósito de chegar a uma única língua original, mãe ou matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias linguísticas e chegar à língua-mãe original.
Nesses estudos, retomava-se a discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era comum aos filólogos e gramáticos a ideia de que as línguas se transformam no tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralinguísticos (migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).
Tais estudos, porém, viram-se diante de problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o aparecimento do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural e o singular, aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos.
Essa descoberta teve resultados curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos (como a alemã); línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o "caráter da língua" segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.
A partir do século XX, uma nova concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais são:
● a linguagem é constituída pela distinção entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua, tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a minha;
● a língua é uma totalidade dotada de sentido no qual o todo confere sentido às partes, isto é, as partes não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual não operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r; os japoneses usam r indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r). Os signos são os elementos da língua; são valores e não coisas ou entidades, isto é, são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais signos;
● numa língua, distinguem-se signo e significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal material da língua (r, l, p, b, q, g, por exemplo), enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais (afetivos, volitivos, perceptivos, imaginativos, evocativos, literários, científicos, retóricos, filosóficos, políticos, religiosos, etc.) veiculados pelos signos; o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos (palavras, frases, orações, proposições, enunciados) que permitem a expressão dos significados e garantem a comunicação;
● a relação dos signos ou significantes com as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez constituída a língua como sistema de relações entre signos/significantes e significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes da língua. Assim, por exemplo, a distinção entre pa e ba, pata e bata é convencional, mas uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável;
● como as partes (signos ou significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em português, existem os signos p e b, d e t porque suas diferenças são pertinentes para o sentido das palavras (dizer pata e bata, dente e tente é dizer sentidos diferentes); também existe a oposição pertinente entre o r e o l, mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso, como vimos, tais signos não existem nessas línguas.
Por relação com sua própria língua, quando um japonês fala o português, é levado a usar sempre o r (que corresponde a um som ou signo diferencial existente em japonês, isto é, faz sentido em japonês) e a substituir o l por r. Quando um chinês fala o português ocorre exatamente o contrário, prevalece o l porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em inglês, não existe o signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português, tende a usar an e am porque são signos-sons que fazem sentido em inglês. A língua, portanto, é feita dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica;
● a língua é um código (conjunto de regras que permitem produzir informação e comunicação) e se realiza através de mensagens, isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular (a mensagem possui um emissor, aquele que emite ou envia a mensagem, e um receptor, aquele que recebe e decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
● o sujeito falante possui duas capacidades: a competência (isto é, sabe usar a língua) e a performance (isto é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é a participação do sujeito em uma comunidade linguística e a performance são os atos de linguagem que realiza;
● a língua se realiza em duas dimensões: a sincronia, ou seja, o todo da língua tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou seja, a língua vista sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de sua história;
● a língua é inconsciente, isto é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a empregamos sem necessidade de conhece-la cientificamente.
Alguns exemplos poderão ajudar-nos a compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código com suas regras próprias, princípios e leis, e cada partida é a maneira como jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do jogo (a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua respeitando o código, mas sem conhece-lo conscientemente, enquanto os jogadores precisam conhecer o código para poder jogar).
O jogo existe antes e depois de cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um do outro, respondendo a cada um deles.
A linguística veio mostrar algo muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os intelectualistas.
Por exemplo, em inglês, é possível dizer "The man I love". Quando traduzimos para o português temos: "O homem que amo". Observamos que, em inglês, parece "faltar" uma palavra: o "que". Notamos também que em inglês parece "sobrar" uma palavra: o "I", o "eu", que não usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e nem sobra nada.
Este sentimento de falta ou sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário, mas de estrutura linguística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da palavra francesa fromage para o português, queijo, temos a impressão de que passamos sem problema de uma língua para outra. Mas não é o caso.
Quando um inglês usa cheese, ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo mais duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno, ao dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região onde mora, da hora e do dia em que vai comer o queijo, sempre acompanhado de pão e vinho.
Para um inglês e para um francês, queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para nós, brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com goiabada ou com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer cheese não é dizer fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer cheese nem queijo; dizer queijo não é dizer cheese nem fromage.
Esse segundo exemplo explica o que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional, mas, uma vez criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese e não é fromage nem queijo).
Esse exemplo nos mostra também que uma língua é algo social, histórico, determinado por condições específicas de uma sociedade e de uma cultura.
A experiência da linguagem
Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa: emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como, experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, ideias.
Após o caminho feito até aqui, podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos.
Em primeiro lugar, teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo linguístico. Por que uma palavra é diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra fumaça, que pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A palavra fumaça, porém, é um símbolo, isto é, algo que indica, representa, exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela.
O símbolo é um análogo (a bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada, representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são palavras: coisas materiais, ideias, pessoas, valores, seres inexistentes, etc. A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
Em segundo lugar, temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como se dá essa relação?
Essa pergunta, como vimos, era central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e explicam verdadeiramente a realidade?
Tradicionalmente, dizia-se que a linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal <-> coisa indicada (realidade)
signo verbal <-> ideia, conceito, valor (pensamento)
No entanto, é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma ideia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma mesma palavra indicando coisas e ideias diferentes.
Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege. "Estrela da manhã" e "estrela da tarde" indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas essas expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta. Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é, referem-se aos sentidos dessa coisa.
Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a ideias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos ideias que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e história própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usa-las todo dia.
Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem sinais para indicar coisas e ideias já existentes? Com o romance descobrimos que as palavras se referem a significações, inventam significações, criam significações.
Imaginemos ou recordemos um diálogo. Quantas vezes conversando com alguém, dizemos: "Puxa! Eu nunca tinha pensado nisso!", ou então: "Você sabe que, agora, eu entendo melhor uma ideia que tinha, mas que não entendia muito bem?", ou ainda: "Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia".
Como essas frases são possíveis? É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se refere a significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.
Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária: palavra ou signo significante <-> sentido ou significação; significado <-> realidade ou mundo (coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais
O mundo suscita sentidos e palavras, as significações levam à criação de novas expressões linguísticas, a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas. Há um vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros.
A linguagem:
● refere-se ao mundo através das significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da palavra;
● relaciona-se com sentidos já existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o pensamento através das palavras;
● exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;
● tem o poder de suscitar significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e, por isso, a literatura é possível.
A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:
A palavra, longe de ser um simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito, mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem não traduz imagens verbais de origem motora e sensorial, nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso, mas encarna as significações.
Linguagem simbólica e linguagem conceitual
A diferença entre linguagem simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessar-nos agora. Fundamentalmente, a linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças entre palavras e sons, entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de uma palavra ou de um conjunto de palavras para substituir outras e criar um sentido poético para a expressão).
A linguagem simbólica realiza-se principalmente como imaginação. A linguagem conceitual procura evitar a analogia e a metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo. Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial, mas não possui uma natureza imaginativa ou imagética.
A linguagem simbólica (dos mitos, da religião, da poesia, do romance, do teatro) e a linguagem conceitual (das ciências, da filosofia) diferem sob os seguintes aspectos:
● a linguagem simbólica é fortemente emotiva e afetiva, enquanto a linguagem conceitual procura falar das emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio deles;
● a linguagem simbólica oferece sínteses imediatas (imagens), enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos, fazendo com que acompanhemos cada passo da análise e da síntese;
● a linguagem simbólica nos oferece palavras polissêmicas, isto é, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e contrários; a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a polissemia e a conotação, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada;
● a linguagem simbólica leva-nos para dentro dela, arrasta-nos para seu interior pela força de seu sentido, de suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos, raciocínios e provas. A linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem conceitual exige o trabalho lento do pensamento;
● a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro, análogo ao nosso, porém mais belo ou mais terrível do que o nosso, mais justo ou mais violento do que o nosso, mais antigo ou mais novo do que o nosso, mais visível ou mais oculto do que o nosso; a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido, ultrapassando suas aparências e seus acidentes;
● a linguagem simbólica, privilegiando a memória e a imaginação, nos diz como as coisas ou os homens poderiam ter sido ou poderão ser, voltando-se para um possível passado ou para um possível futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente, fala do necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura também as linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.
RESUMINDO…
A linguagem em sentido amplo (isto é, englobando língua, fala e palavra) é constituída por quatro fatores fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos, neurológicos, sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar, escutar, escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos. Assim, o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes, bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a momentos diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos (emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência) que criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como criam nossa capacidade para a performance linguística, seja ela cotidiana, artística, científica ou filosófica;
4. fatores linguísticos propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de criar e compreender significações.
Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. É a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a linguagem, mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento:
● a linguagem não é mecanismo psicomotor (os fatores 1 e 3 apresentam as condições biológicas e psicológicas para haver linguagem, mas não qual é a natureza da experiência da palavra);
● a linguagem não é simples relação binária entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária, na qual os signos são símbolos que veiculam significações;
● a linguagem não traduz pensamentos, mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos valores;
● a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma dimensão de nossa existência;
● a linguagem, como a percepção e a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias, pois, como disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É, assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o instrumento do engano, do falso e da mentira;
● a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo faze-lo miticamente ou logicamente, magicamente ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente.

Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.