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segunda-feira, 22 de outubro de 2018
terça-feira, 16 de outubro de 2018
terça-feira, 9 de outubro de 2018
2º Ano / 4º Bim.
AS FILOSOFIAS
POLÍTICAS
O ideal republicano
À volta dos castelos feudais,
durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou burgos. Enquanto na sociedade
como um todo prevalecia a relação de vassalagem – juramento de fidelidade
prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo -, nos
burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social,
a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos,
comerciantes, etc. organizavam-se em confrarias, em que os membros estavam ligados
por um juramento de confiança recíproca. Embora internamente as corporações
também fossem hierárquicas, era possível, a partir de regras convencionadas
entre seus membros, ascender na hierarquia e, externamente, nas relações com
outras corporações, todos eram considerados livres e iguais.
As corporações fazem surgir uma
nova classe social que, nos séculos seguintes, irá tornar-se economicamente
dominante e buscará também o domínio político: a burguesia, nascida nos burgos.
Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do
Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em
desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tornam poderosas
as corporações e as famílias de comerciantes, enquanto o poderio agrário dos
barões começa a diminuir. As cidades estão iniciando o que viria a ser
conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não
podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia
feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas.
As lutas econômicas da burguesia
nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações
políticas: as cidades desejam independência em face de barões, reis, papas e
imperadores. Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e
técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias
políticas, suscitam um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o
poder teológico-político de papas e imperadores. Estamos no período conhecido
como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a
ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido
considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade
para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.
Filósofos, historiadores,
dramaturgos, retóricos, tratados de medicina, biologia, arquitetura,
matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido,
traduzido, comentado e aplicado. Esparta, Atenas e Roma são tomadas como
exemplos da liberdade republicana. Imitá-las e valorizar a prática política, a
vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela
Igreja. Fala-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as
formas mais altas da dignidade humana.
Nesse ambiente, entre 1513 e
1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno:
O príncipe, de Maquiavel. Antes de “O príncipe” Embora diferentes e, muitas
vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num
mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e
religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais
são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o
poder seria uma graça ou um fator divino; no entanto, embora recusem a
teocracia, não podem recusar uma outra idéia cristã, qual seja, a de que o
poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo
com a vontade de Deus e a Providência divina.
Assim, elementos de teologia
continuam presentes nas formulações teóricas da política. Se deixarmos de lado
as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras
políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas: ?
encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política.
Em outras palavras, para uns, o fundamento da política encontra-se em Deus
(seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência
divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na
Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente
político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que existe
uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz
instituir a vida política.
Há, pois, algo – Deus, Natureza
ou razão – anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;
? afirmam que a política é instituição
de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou
justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e
ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens
perversos e sediciosos, que devem, a qualquer preço, ser afastados da
comunidade e do poder;
? assentam a boa comunidade e a
boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional,
portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;
? classificam os regimes
políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a
aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com os segundos o
poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado
antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um
governante vicioso e perverso. Em relação à tradição do pensamento político, a
obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.
Maquiavélico, maquiavelismo
Estamos acostumados a ouvir as
expressões maquiavélico e maquiavelismo. São usadas quando alguém deseja
referir-se tanto à política quanto aos políticos, quanto a certas atitudes das
pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por
exemplo, num comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no
maquiavelismo de certos jornais, etc.).
Quando ouvimos ou empregamos
essas expressões? Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém
desleal, hipócrita, fingidor, poderosamente malévolo, que brinca com
sentimentos e desejos dos outros, mente-lhes, faz a eles promessas que sabe que
não cumprirá, usa a boa-fé alheia em seu próprio proveito. Falamos num “poder
maquiavélico” para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores,
mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que
afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais, violentos e
perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às
escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e
destruição. Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente
poderoso e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazerem
exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso.
Como se nota, maquiavélico e
maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado
diabólico. Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e
que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome,
fale em maquiavélico e maquiavelismo?
A revolução maquiavelista
Diferentemente dos teólogos, que
partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e,
diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos
filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da
experiência real de seu tempo. Foi diplomata e conselheiro dos governantes de
Florença, via as lutas européias de centralização monárquica (França,
Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das
grandes cidades e sobretudo viu a fragmentação da Itália, dividida em reinos,
ducados, repúblicas e Igreja.
A compreensão dessas experiências
históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma
nova concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para
a Itália e para Florença. Sua obra funda o pensamento político moderno porque
busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus
contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar
a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.
Se compararmos o pensamento
político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição
política, observaremos por onde passa a ruptura maquiavelista:
1. Maquiavel não admite um
fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda
Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos
opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não
ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma
comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão
humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a
instituir um pólo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse pólo
é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da
própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A política resulta
da ação social a partir das divisões sociais;
2. Maquiavel não aceita a idéia
da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como
vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os
grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser
vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum.
Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os
grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo,
como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos
fossem irmãos e iguais numa bela comunidade. A finalidade política não é, como
diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas,
como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O verdadeiro
príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais
deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si,
mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao
desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da
justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da
lei;
3. Maquiavel recusa a figura do
bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das
virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtu, mas
esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para
tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a
astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e
respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser
odiado. Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido – o
que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não
precisa ser amado, pois isto o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai
conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe
aparecerá na qualidade das instituições que soube criar e manter e na
capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou
sorte;
4. Maquiavel não aceita a divisão
clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e
suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia),
como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o
usurpado por conquista. Qualquer regime político – tenha a forma que tiver e
tenha a origem que tiver – poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de
avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade.
Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior
do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é
legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas
sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que
rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a
serviço do povo.
O príncipe pode ser monarca
hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força,
o poder. Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for uma república e
não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não
está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de
particulares. Dissemos que a tradição grega tornara ética e política
inseparáveis, que a tradição romana colocara essa identidade da ética e da política
na pessoa virtuosa do governante e que a tradição cristã transformara a pessoa
política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a
comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro
da política, orientada pela idéia de justiça e bem comum. Esse conjunto de
idéias e imagens é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção
maquiavelista que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do
príncipe virtuoso.
Quando estudamos a ética, vimos
que a questão central posta pelos filósofos sempre foi: O que está e o que não
está em nosso poder? Vimos também que “estar em nosso poder” significava a ação
voluntária racional livre, própria da virtude, e “não estar em nosso poder”
significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e
determinam nossa vontade e nossa ação. Vimos, ainda, que esse conjunto de
circunstâncias que não dependem de nós nem de nossa vontade foi chamado pela
tradição filosófica de fortuna. A oposição virtude-fortuna jamais abandonou a
ética e, como esta surgia inseparável da política, a mesma oposição se fez
presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é aquele cujas
virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante fortuna. Maquiavel
retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido inteiramente novo.
A virtu do príncipe não consiste
num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra
ela. A virtu é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias,
mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um
príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios
em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtu alguma. Para ser senhor
da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e
inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas
circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões
deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à
vontade dos outros, em algumas, ser inflexível.
O ethos ou caráter do príncipe
deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas. A
fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferecese
como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la.
Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso
e a inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia
e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para
agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.
A lógica política nada tem a ver
com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser
imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtu política. Em outras
palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia
prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade
privada dos indivíduos.
O ethos político e o ethos moral
são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara
a lógica real do poder. Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder
como independente da religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só
poderia ter sido visto como “maquiavélico”. As palavras maquiavélico e
maquiavelismo, criadas no século XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo
que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as
máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza.
Para o Ocidente cristão do século
XVI, o príncipe maquiavelista, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só
poderia ser diabólico. À sacralização do poder, feita pela teologia política,
só poderia opor-se a demonização. É essa imagem satânica da política como ação
social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam.
O mundo desordenado
A obra de Maquiavel, criticada em
toda a parte, atacada por católicos e protestantes, considerada atéia e
satânica, tornou-se, porém, a referência obrigatória do pensamento político
moderno. A idéia de que a finalidade da política é a tomada e conservação do
poder e que este não provém de Deus, nem da razão, nem de uma ordem natural
feita de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação
do poder. Em alguns casos, como na França e na Prússia, surgirá a teoria do
direito divino dos reis, baseada na reformulação jurídica da teologia política
do “rei pela graça divina” e dos “dois corpos do rei”.
Na maioria dos países, porém, a concepção
teocrática não foi mantida e, partindo de Maquiavel, os teóricos tiveram que
elaborar novas teorias políticas. Para compreendermos os conceitos que fundarão
essas novas teorias precisamos considerar alguns acontecimentos históricos que
mudaram a face econômica e social da Europa, entre os séculos XV e XVII. Já
mencionamos, ao tratar do ideal republicano, o novo papel das cidades e da nova
classe social – a burguesia – no plano econômico, social e político.
Outros fatores, além do
crescimento das corporações de ofício e do comércio, são também importantes
para o fortalecimento dessa nova classe:
? a decadência e ruína de
inúmeras famílias aristocráticas, cujas riquezas foram consumidas nas guerras
das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram abandonadas porque seus
nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram sem deixar herdeiros.
Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de armamentos e pagamentos de
exércitos para as Cruzadas, suas terras sendo confiscadas pelo rei para cobrir
as dívidas. Os servos da gleba, que trabalhavam nessas propriedades, bem como
os camponeses pobres e livres, que as arrendavam em troca de serviços, migravam
para as cidades, tornando-se membros das corporações de ofícios ou servos
urbanos de famílias nobres que haviam passado a dedicar-se ao comércio;
? a decadência agrária foi
acelerada também por uma grande peste que assolou a Europa no final da Idade
Média – a chamada peste negra -, que dizimou gente, gado e colheitas,
arruinando a nobreza fundiária e causando migrações para as cidades;
? a vida urbana provocou o
crescimento de atividades artesanais e, com elas, o desenvolvimento comercial
para compra e venda dos produtos, criando especialidades regionais e o
intercâmbio comercial em toda a Europa;
? as grandes rotas do comércio
com o Oriente, dominadas, primeiro, pelas cidades italianas e, depois, pelos
impérios ultramarinos de Portugal, Espanha, Inglaterra e França, deram origem a
um novo tipo de riqueza, o capital, baseado no lucro advindo da exploração do
trabalho dos homens pobres e livres que haviam migrado para as cidades e na
exploração do trabalho escravo de nativos e negros nas Américas. Nas cidades,
primeiro, e no campo, depois, a miséria e as péssimas condições de trabalho e
de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos.
No campo, tais revoltas foram um
dos efeitos da Reforma Protestante, que acusara a Igreja e a nobreza de
cometerem o pecado da ambição, explorando e oprimindo os pobres. Nas cidades,
as revoltas populares eram também um efeito da Reforma Protestante, que havia
declarado a igualdade dos seres humanos, afirmando como principal virtude o
trabalho e principal vício a preguiça. O desenvolvimento econômico das cidades,
o surgimento da burguesia comerciante ou mercantil, o crescimento da classe dos
trabalhadores pobres, mas livres (isto é, sem laços de servidão com os senhores
feudais), a Reforma Protestante que questionara o poder econômico e político da
Igreja, as revoltas populares, a guerra entre potências pelo domínio dos mares
e dos novos territórios descobertos, a queda de reis e de famílias da nobreza,
a ascensão de famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os
nobres, todos esses fatos evidenciavam que a idéia cristã, herdada do Império
Romano e consolidada pela Igreja Romana, de um mundo constituído naturalmente
por hierarquias era uma idéia que não correspondia à realidade.
A nova situação histórica fazia
aparecer dois fatos impossíveis de negar:
1. a existência de indivíduos –
um burguês e um trabalhador não podiam invocar sangue, família, linhagem e
dinastia para explicar por que existiam e por que haviam mudado de posição
social, mas só podiam invocar a si mesmos como indivíduos;
2. a existência de conflitos
entre indivíduos e grupos de indivíduos pela posse de riquezas, cargos, postos
e poderes anulava a imagem da comunidade cristã, una, indivisa e fraterna. Os
teóricos precisavam, portanto, explicar o que eram os indivíduos e por que
lutavam mortalmente uns contra os outros, além de precisarem oferecer teorias
capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais. Em outras palavras,
foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política. Por que
indivíduos isolados formam uma sociedade? Por que indivíduos independentes
aceitam submeter-se ao poder político e às leis?
A resposta a essas duas perguntas
conduz às idéias de Estado de Natureza e Estado Civil.
Estado de Natureza, contrato
social, Estado Civil O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar
a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as
principais concepções do Estado de Natureza:
1. a concepção de Hobbes (no
século XVII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem
isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o
homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande
medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos
inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis,
pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as
terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e,
portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto
tenha força para conquistar e conservar;
2. a concepção de Rousseau (no
século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem
isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá,
desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua
generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos
existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um
terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade
privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de
Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.
O Estado de Natureza de Hobbes e
o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta
entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para
cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à
sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.
A passagem do Estado de Natureza
à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos
renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e
concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e
aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a
soberania.
Como é possível o contrato ou o
pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano –
“Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei
Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo” – para legitimar a
teoria do contrato ou do pacto social. Parte-se do conceito de direito natural:
por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à
sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres,
ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos.
Um contrato ou um pacto, dizia a
teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres
e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo
pactuado. A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar
o contrato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os
mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para
transferir a liberdade a um terceiro; e se consentem voluntária e livremente
nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da
soberania.
Assim, por direito natural, os
indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto
ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los. Para Hobbes, os
homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um
corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama
Estado.
Para Rousseau, os indivíduos
naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo
moral coletivo ou Estado. A teoria do direito natural e do contrato evidencia
uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em
comunidade, mas em sociedade.
A idéia de comunidade pressupõe
um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, compartilhando os mesmos bens, as
mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e possuindo um destino comum. A
idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos
independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que
decidem, por um ato voluntário, tornaremse sócios ou associados para vantagem
recíproca e por interesses recíprocos.
A comunidade é a idéia de uma
coletividade natural ou divina; a sociedade, a de uma coletividade voluntária,
histórica e humana. A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da
sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e
aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes
transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a
transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a
liberdade e a propriedade privada dos governados.
Estes transferiram ao soberano o
direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes,
da regulamentação dos contratos econômicos, isto é, a instituição jurídica da
propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento
civil, a legislação sobre a herança, etc.). Quem é o soberano? Hobbes e
Rousseau diferem na resposta a essa pergunta. Para Hobbes, o soberano pode ser
um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática.
O fundamental não é o número de
governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta
pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas,
tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade
privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite
dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por
eles que o soberano foi criado.
O soberano detém a espada e a
lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens. Para Rousseau, o soberano
é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral coletiva livre e corpo
político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como
povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados
em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o
representante da soberania popular.
Os indivíduos aceitam perder a
liberdade civil; aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade
civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem
representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do
governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e
súditos das leis.
A teoria liberal no pensamento
político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural,
mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no
Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens,
essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A
propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do
soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.
De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio
econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia
monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também
permaneciam.
Para enfrentá-los em igualdade de
condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão
grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à
nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua
primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do
século XVII e início do século XVIII.
Locke parte da definição do
direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a
conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho. Como fazer do
trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural?
Deus, escreve Locke, é um artífice, um
obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do
trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou
o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao
expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o
teria com o suor de seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, no
momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como
fruto legítimo do trabalho.
Por isso, de origem divina, ela é
um direito natural. O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções
que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito
natural de propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente
legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como
superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao
seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade. O
burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres,
mas também como superior aos pobres.
De fato, se Deus fez todos os
homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o
direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que
não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição
inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para
outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo
para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente
para conseguir uma propriedade. Se a função do Estado não é a de criar ou
instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a
nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?
A teoria liberal, primeiro com
Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da
Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max
Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:
1. por meio das leis e do uso
legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de
propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a
propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de
liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos
proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades
econômicas;
2. visto que os proprietários
privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou
do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercalase uma esfera social, a
sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a
função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a
função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade
civil;
3. o Estado tem o direito de legislar,
permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o
direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir
a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os
governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões
sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.
Na Inglaterra, o liberalismo se
consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa,
será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos,
consolida-se em 1776, com a luta pela independência.
Liberalismo e fim do Antigo
Regime
As idéias políticas liberais têm
como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos
reis, derivadas da concepção teocrática do poder. O liberalismo consolida-se
com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, com a Revolução Francesa, que
derrubou o Antigo Regime.
Antigo, em primeiro lugar, porque
politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque
socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social e na
organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao
senhor. Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil
(relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de
hierarquia. Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de
submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia
da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante.
O término do Antigo Regime se
consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito
natural dos indivíduos, desfazendo a imagem do rei como marido da terra, senhor
dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho
quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada,
ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca.
O poder tem a forma de um Estado
republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é
tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos
representantes dos proprietários privados. As teorias políticas liberais
afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder
político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes
cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e
propriedade).
O indivíduo é o cidadão.
Afirmam também a existência de
uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a
sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam
suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e
posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe
peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça
perigoso para a manutenção da própria sociedade.
Afirmam o caráter republicano do
poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos
proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder
judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares. Quanto ao
poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está
submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito
por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que
possuírem uma certa renda ou riqueza. O Estado, através da lei e da força, tem
o poder para dominar – exigir obediência – e para reprimir – punir o que a lei
defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida
pelos proprietários privados e seus representantes.
A cidadania liberal
O Estado liberal se apresenta
como república representativa constituída de três poderes: o executivo
(encarregado da administração dos negócios e serviços públicos), o legislativo
(parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário (magistraturas de
profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui um corpo de
militares profissionais que formam as forças armadas – exército e polícia -,
encarregadas da ordem interna e da defesa (ou ataque) externo. Possui também um
corpo de servidores ou funcionários públicos, que formam a burocracia,
encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos.
O Estado liberal julgava
inconcebível que um não-proprietário pudesse ocupar um cargo de representante num
dos três poderes. Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e
independentes, queriam dizer com isso que eram dependentes e não-livres os que
não possuíssem propriedade privada. Estavam excluídos do poder político,
portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a maioria da sociedade. Lutas
populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o Estado
liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a cidadania
política.
Com exceção dos Estados Unidos,
onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII,
nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir
completamente no século XX, como conclusão de um longo processo em que a
cidadania foi sendo concedida por etapas. Não menos espantoso é o fato de que
em duas das maiores potências mundiais, Inglaterra e França, as mulheres só
alcançaram plena cidadania em 1946, após a Segunda Guerra Mundial. Pode-se
avaliar como foi dura, penosa e lenta essa conquista popular, considerando-se
que, por exemplo, os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadãos
nos anos 60 do século passado. Também é importante lembrar que em países da
América Latina, sob a democracia liberal, os índios ficaram excluídos da
cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994.
As lutas indígenas, em nosso continente, e as africanas continuam até nossos
dias.
A idéia de revolução
A política liberal foi o
resultado de acontecimentos econômicos e sociais que impuseram mudanças na
concepção do poder do Estado, considerado instituído pelo consentimento dos
indivíduos através do contrato social. Tais acontecimentos ficaram conhecidos
com o nome de revoluções burguesas, isto é, mudanças na estrutura econômica, na
sociedade e na política, efetuadas por uma nova classe social, a burguesia. O
uso da palavra revolução para designar tais mudanças é curioso.
De fato, essa palavra provém do
vocabulário da astronomia, significando o movimento circular completo que um
astro realiza ao voltar ao seu ponto de partida. Uma revolução se efetua quando
o movimento total de um astro faz coincidirem seu ponto de partida e seu ponto
de chegada.
Revolução designa movimento
circular cíclico, isto é, repetição contínua de um mesmo percurso. Como entender
que essa palavra tenha entrado para o vocabulário político significando
mudanças e alterações profundas nas relações sociais e no poder? Como entender
que, em vez de significar retorno circular e cíclico ao ponto de partida,
signifique exatamente o contrário, isto é, percurso rumo ao tempo novo e à
sociedade nova? Para responder a essas perguntas precisamos examinar um pouco
mais de perto as revoluções burguesas, isto é, a Revolução Inglesa de 1644, a
Revolução Norte Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.
Embora em todas elas o resultado
tenha sido o mesmo, qual seja, a subida e consolidação política da burguesia
como classe dominante, nas três houve o que um historiador denominou de
“revolução na revolução”, indicando com isso a existência de um movimento
popular radical ou a face democrática e igualitária da revolução, derrotada
pela revolução burguesa.
Em outras palavras, nas três
revoluções, a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza,
passou a dominar o Estado e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças,
enquanto as classes populares, que participaram daquela vitória, desejavam
muito mais: desejavam instituir uma sociedade inteiramente nova, justa, livre e
feliz. Ora, as classes populares não possuíam teorias políticas de tipo
filosófico e científico. Para explicar o mundo em que viviam e o mundo que
desejavam dispunham de uma única fonte: a Bíblia. Através da religião, possuíam
duas referências de justiça e felicidade: a imagem do Paraíso terrestre (no
Antigo Testamento) e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém (no Novo
Testamento) que restauraria o Paraíso depois que Cristo viesse ao mundo pela
segunda vez e, no fim dos tempos ou tempo do fim, derrotasse para sempre o Mal.
As classes populares revolucionárias dispunham, portanto, de um imaginário
messiânico e milenarista (milenarista porque o Reino de Deus na Terra duraria
mil anos de felicidade, abundância e justiça).
Ao lutarem politicamente, as
classes populares olhavam para o passado (o ponto de partida dos homens no
Paraíso) e para o futuro (o ponto de chegada dos homens na Nova Jerusalém).
Olhavam para o tempo futuro e novo – a sociedade dos justos na Terra -, que
seria a restituição ou restauração do tempo passado original – o Paraíso.
Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do movimento político coincidiam
com a existência da justiça e da felicidade, o futuro e o passado se
encontravam, fechando o ciclo e o círculo da existência humana, graças à ação
do presente. Por isso, designaram os acontecimentos de que eram os sujeitos e
protagonistas com a palavra revolução. Se compararmos os movimentos
revolucionários dos séculos XVII e XVIII com a teoria política liberal,
notaremos uma diferença importante entre eles. De fato, as teorias liberais
separam o Estado e a sociedade civil.
O primeiro aparece como instância
impessoal de dominação (impõe obediência), de estabelecimento e aplicação das
leis, como garantidor da ordem através do uso legal da violência para punir
todo o crime definido pelas leis, e como árbitro dos conflitos sociais. A
sociedade civil, por seu turno, aparece como um conjunto de relações sociais
diversificadas entre classes e grupos sociais, cujos interesses e direitos
podem coincidir ou opor-se. Nela existem as relações econômicas de produção,
distribuição, acumulação de riquezas e consumo de produtos que circulam através
do mercado.
O centro da sociedade civil é a
propriedade privada, que diferencia indivíduos, grupos e classes sociais, e o
centro do Estado é a garantia dessa propriedade, sem, contudo, mesclar política
e sociedade. O coração do liberalismo é a diferença e a distância entre Estado
e sociedade. Ora, as revoluções, e sobretudo a face popular das revoluções,
operam exatamente com a indistinção entre Estado e sociedade, entre ação
política e relações sociais.
As revoluções pretendem derrubar
o poder existente ou o Estado porque o percebem como responsável ou cúmplice
das desigualdades e injustiças existentes na sociedade. Em outras palavras, a
percepção de injustiças sociais leva às ações políticas. Uma revolução pode
começar como luta social que desemboca na luta política contra o poder ou pode
começar como luta política que desemboca na luta por uma outra sociedade. Eis
por que, em todas as revoluções burguesas, vemos sempre acontecer o mesmo
processo: a burguesia estimula a participação popular, porque precisa que a
sociedade toda lute contra o poder existente; conseguida a mudança política,
com a passagem do poder da monarquia à república, a burguesia considera a
revolução terminada; as classes populares, porém, a prosseguem, pois aspiram ao
poder democrático e desejam mudanças sociais; a burguesia vitoriosa passa a
reprimir as classes populares revolucionárias, desarma o povo que ela própria
armara, prende, tortura e mata os chefes populares e encerra, pela força, o
processo revolucionário, garantindo, com o liberalismo, a separação entre
Estado e sociedade.
Significado político das
revoluções.
Uma revolução, seja ela burguesa
ou popular, possui um significado político da mais alta importância, porque
desvenda a estrutura e a organização da sociedade e do Estado. Ela evidencia:
? a divisão social e política,
sob a forma de uma polarização entre um alto opressor e um baixo oprimido;
? a percepção do alto pelo baixo
da sociedade como um poder que não é natural nem necessário, mas resultado de
uma ação humana e, como tal, pode ser derrubado e reconstruído de outra
maneira;
? a compreensão de que os agentes
sociais são sujeitos políticos e, como tais, dotados de direitos. A consciência
dos direitos faz com que os sujeitos sociopolíticos exijam reconhecimento e
garantia de seus direitos pela sociedade e pelo poder político. Eis por que
toda revolução culmina numa declaração pública conhecida como Declaração
Universal dos Direitos dos Cidadãos;
? pela via da declaração dos
direitos, uma revolução repõe a relação entre poder político e justiça social,
mas com uma novidade própria do mundo moderno, pois a justiça não depende mais
da figura do bom governo do príncipe virtuoso, e sim de instituições públicas
que satisfaçam à demanda dos cidadãos ao Estado. Cabe ao novo poder político
criar instituições que possam satisfazer e garantir a luta revolucionária por
direitos.
As revoluções sociais
Acabamos de ver que as revoluções
modernas possuem duas faces: a face burguesa liberal (a revolução é política,
visando à tomada do poder e à instituição do Estado como república e órgão
separado da sociedade civil) e a face popular (a revolução é política e social,
visando à criação de direitos e à instituição do poder democrático que garanta
uma nova sociedade justa e feliz). Vimos também que, nas revoluções modernas, a
face popular é sufocada pela face liberal, embora esta última seja obrigada a
introduzir e garantir alguns direitos políticos e sociais para o povo, de modo
a conseguir manter a ordem e evitar a explosão contínua de revoltas populares.
A face popular vencida não desaparece. Ressurge periodicamente em lutas
isoladas por melhores condições de vida, de trabalho, de salários e com
reivindicações isoladas de participação política. Essa face popular tende a
crescer e manifestar-se em novas revoluções (derrotadas) durante todo o século
XIX, à medida que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares
se tornam uma classe social de perfil muito definido: os proletários ou
trabalhadores industriais.
Correspondendo à emergência e à
definição da classe trabalhadora proletária e à sua ação política em revoluções
populares de caráter político-social, surgem novas teorias políticas: as várias
teorias socialistas.
As teorias socialistas tomam o
proletariado como sujeito político e histórico e procuram figurar uma nova
sociedade e uma nova política na qual a exploração dos trabalhadores, a
dominação política a que estão submetidos e as exclusões sociais e culturais a
que são forçados deixem de existir.
Porque seu sujeito político são
os trabalhadores, essas teorias políticas tendem a figurar a sociedade futura
como igualitária, feita de abundância, justiça e felicidade. Como percebem a
cumplicidade entre o Estado e a classe economicamente dominante, julgam que a
existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da burguesia e
por isso afirmam que, na sociedade futura, quando não haverá divisão social de
classes nem desigualdades, a política não dependerá do Estado. São, portanto,
teorias antiestatais, que apostam na capacidade de autogoverno ou de autogestão
da sociedade.
Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000
3º Ano / 4º Bim.
O UNIVERSO DAS ARTES
Alberto Caeiro é um dos
heterônimos de Fernando Pessoa e é incrível como neste poema:
O meu olhar é nítido como um
girassol
Tenho o Costume de andar pelas
estradas
Olhando para direita e para
esquerda,
E de vez em quando olhando para
trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo nunca antes eu tinha
visto,
E eu sei dar por isso muito
bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao
nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo podemos
encontrar suficientes caminhos de descobrimento para significações da arte
principalmente entendendo o olhar do artista que realmente nasce a cada
momento, a cada criação; e este nascimento é para o momento, novo; ao mesmo
tempo em que é, eterno. Fernando Pessoa criou vários personagens e este Alberto
Caeiro nos mostra com sua filosofia simples que coisas aparentemente distintas
caminham mais íntimas que possamos imaginar.
Ora se arte não é
novidade/eternidade; eternidade/novidade? O artista a cada momento
transforma-se, recicla-se sempre em busca do novo em si mesmo e essa busca é na
verdade também em algo que existe desde sempre e que nunca deixará de existir,
ou seja, é eterno. A autora exemplifica citando Monet que pinta a mesma
catedral e na verdade a “mesma” não existe, pois a cada catedral pintada, uma
nova catedral nasce e posso citar o poeta paraense Max Martins que hoje em dia
já não mais cria ou cria muito pouco, porém, refaz, reescreve muito mais,
conserta, reorganiza poemas outrora escritos.
Então podemos concluir que dentro
da arte o eterno e o novo se fazem em um só e “o que há de espantoso nas artes
é que elas realizam o desvendamento do mundo recriando o mundo noutra dimensão
e de tal maneira que a realidade não está aquém e nem na obra, mas é a própria
obra de arte”. O homem faz arte também no intuito de descobrir o mundo e o faz descobrindo
a si mesmo. Se conhecer também é o caminho para a evolução.
Arte e Técnica
Ainda pouco vimos que eterno e
novo são distintos e ao mesmo tempo semelhantes. Quando nos propomos a entender
Arte e Técnica vimos também percebemos semelhanças e diferenças entre ambas.
Podemos dizer que um médico tem a arte de curar, a arte médica e podemos ainda
dizer que este médico é técnico em curar, a técnica médica, mas, examinado com
mais cautela já percebemos alguma diferença: a minha impressão é que técnica é o
aprofundamento da arte. O médico se forma em medicina e se especializa em algum
ramo da medicina, ou seja, se especializa, se torna técnico em tal área. Na
verdade nos dias atuais, muita coisa mudou não só quanto a esses termos, mas
também como a arte médica, hoje, caminho para quem quer ter estabilidade no
futuro sem muitas vezes, ter a capacidade médica, a arte médica, a técnica
médica. O que pode nos auxiliar no entendimento é justamente ir de encontro às
origens destas palavras, o que Marilena Chauí faz questão de esclarecer:
Ars: Arte em Latim que é
correspondente ao termo grego techne que para nós significa técnica. No sentido
lato, significa habilidade, desteridade, agilidade. Em sentido estrito,
instrumento, ofício, ciência. Seu campo semântico se define por oposição ao
acaso, ao espontâneo e ao natural. No sentido mais geral, arte é um conjunto de
regras para dirigir uma atividade humana qualquer. É justamente por isso que
citei o exemplo médico, mas poderíamos citar inúmeros como o faz Chauí: arte
política, arte bélica. Retórica, lógica, poética etc. Porém podemos também
examinar arte e técnica pelo viés da música. Ora, um músico pode ter a arte de
tocar, mas pode não ter a técnica e do contrário também, neste caso, ocorre.
Platão não distinguia arte,
ciências e filosofia, uma que estas são atividades regradas e ordenadas, como a
arte o é. A divisão platônica “era feita de dois tipos: as judicativas, isto é,
dedicadas apenas ao conhecimento, e as dispositivas ou imperativas, voltadas
para a direção de uma atividade com base no conhecimento de suas regras”. O que
percebemos é que há complementações nas idéias platônicas, pois Aristóteles já
estabelece uma outra perspectiva que perdura durante muito tempo na cultura
ocidental. Ciência-Filosofia distingue-se de arte ou técnica: “a primeira
refere-se ao NECESSÁRIO, isto é, ao que não pode ser diferente do que é,
enquanto a segunda se refere ao CONTINGENTE ou ao POSSÍVEL, portanto, ao que se
pode ser diferente do que é. Outra distinção é feita no próprio campo do
possível, pela diferença entre ação e fabricação, isto é, entre PRÁXIS e
POIESIS. A política e a ética são ciência da ação enquanto artes ou técnicas
são atividades de fabricação”.
Para completar a distinção
Plotino separa teoria e prática e distingue também as técnicas ou artes cuja
finalidade é auxiliar a natureza como medicina e agricultura daquelas cuja
finalidade é fabricar como as matérias oferecidas pela natureza como o
artesanato. Também as artes ou técnicas que não se relacionam diretamente com a
natureza como música e retórica, por exemplo, que, tendo efeito principal no
indivíduo tornando melhor ou pior.
O que nos chama atenção é que
essa formação ou classificação da arte ou técnica venha se formar nas
sociedades antigas, justamente nas sociedades em que não era valorizado o
trabalho manual justamente por ser feito pela mão-de-obra escrava. Outro
aspecto interessante é que para cada época da história humana, encontra-se uma
divisão quanto às artes e/ou as técnicas. Por exemplo, até o século XV, as
artes são divididas entre artes liberais (dignas de um homem livre) e servis ou
mecânicas (própria do trabalhador manual).
Durante a Idade Média, Santo
Tomás de Aquino justifica a diferença entre as artes que dirigem os trabalhos
com a razão e as que dirigem os trabalhos com as mãos e assim, baseando-se
nisso, institui que as artes liberais são: gramática, retórica, lógica,
aritmética, geometria, astronomia, e música. Sendo artes mecânicas todas as
atividades técnicas: medicina, arquitetura, agricultura, pintura, escultura,
olaria, tecelagem etc. Ficam as perguntas: Um artista que usa as mãos não
utiliza a razão e vice-versa? É interessante observar que nos dias atuais o
termo profissional liberal é justamente o oposto do que era ser liberal Idade
Média.
Na Renascença, porém, há uma
busca pela valorização do trabalho manual, ou seja, pelas artes mecânicas que
tinha até aquele momento um status diferente, inferior ao das artes liberais e
esta valorização não passa de interesse econômico tendo em vista que o
capitalismo começara a dar seus primeiros passos e as fontes e causas das
riquezas vinham do trabalho manual. A primeira dignidade obtida pelas artes
mecânicas foi sua elevação à condição de conhecimento, como as artes liberais.
A segunda dignidade foi alcançada no final do século XII e a partir do século
XIII, quando se distinguiram as finalidades das várias artes mecânicas, isto é,
as que têm como fim o que é útil aos homens – medicina, agricultura, culinária,
artesanato – e aquelas cujo fim é o BELO – pintura, escultura, arquitetura,
poesia, música, teatro dança. Desse modo, com a idéia de beleza surgem as belas
artes, modo pelo qual nos acostumamos a entender a arte. Daí em diante a
distinção entre as artes acarretou uma separação entre técnica (o útil) e arte
(o belo). O que criou uma forte imagem da sensibilidade e da fantasia do
artista como gênio-criador. “Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras
e receitas vindas da tradição ou da ciência, o artista é visto como dotado de
INSPIRAÇÂO, entendida como uma espécie de iluminação interior e espiritual
misteriosa, que leva o gênio a criar a obra”.
Emmanuel Kant viria estudar
amplamente o juízo de gosto, conceito que surgira a partir da conclusão de que
a obra de arte é pensada a partir de sua finalidade – a criação do belo – onde
podemos observar inseparável da figura do público (espectador, ouvinte,
leitor), que julga e avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado
a beleza. E é justamente essas discussões do belo, da beleza, do gosto do
público, do lado da obra, do gênio criador, inspiração que vêm ser os pilares
da construção e uma disciplina filosófica: a estética. Todavia, desde o final do
século XIX e durante o século XX, modificou-se a relação entre arte e técnica.
Na verdade conceitos também mudaram e, por exemplo, técnica deu espaço à
tecnologia e também por outro lado as artes passaram a ser concebidas menos
como expressão genial misteriosa e mais como expressão criadora como
transfiguração das possibilidades de cada linguagem artística como o movimento,
do visível, do sonoro etc.
Para expressarem-se os artistas
recorrem às técnicas, como sempre o fizeram apesar daquela imagem de gênio criador
inspirado, que tira de dentro de si a obra.
Arte e Religião
Historicamente, o trabalho e a
religião desempenharam papéis fundamentais para humanidade no sentido de sua
organização como sociedade, sendo que, o trabalho traz noções de vida em comunidade
e a religião noções de autoridade esta sociabilidade proporcionada por ambos
instituem também símbolos de organização quanto ao espaço/tempo,
corpo/espírito. Com isso, as artes, tanto mecânicas quanto técnicas tornam-se
inseparáveis do trabalho e da religião.
Na verdade essa relação com o
sagrado que organiza o espaço e o tempo e ainda o sentimento da comunhão,
também separa o Homem e Natureza e deles com o divino simbolizam o todo da
realidade pela sacralização, ou seja, as atividades humanas assumem formas
ritualísticas como, por exemplo, doença e cura, nascimento e morte, mudança de
estações, a semeadura e a colheita, a passagem do dia à noite etc.
Por muito tempo então, se têm
arte como atividades técnico-religiosas, pois pintar, edificar, cozinhar,
caçar, plantar, assumem as mesmas características de ritos, sendo assim, tidas
como iguais tendo em vista que o trabalho e a religião tendem sacralizar e
ritualizar a vida. Serão ainda necessários alguns anos e profundas
transformações histórico-sociais para as belas artes, como hoje conhecemos,
tornarem-se independentes, dotadas de valor, autonomia e significações
próprias.
O interessante é que antes de
acontecer de fato, esta “emancipação” das linguagens, os artistas eram tidos
também como “magos”, devido o conhecimento em diversas áreas como nas
combinações médico/astrólogo/músico ou arquiteto/dançarino/escultor – tão raras
quanto atuais – pois eram iniciados em mistérios, ou seja, em um rito sagrado.
Aprendia-se a conhecer a matéria prima para uma determinada arte e manusear os
instrumentos necessários para sua criação. A dimensão religiosa das artes deu
objetos artísticos ou às obras de arte uma qualidade que foi estudada pelo
filósofo alemão Walter Benjamim: a aura. Mas o que é a aura?
“A aura é a absoluta
singularidade de um ser – natural ou artístico –, sua qualidade de eternidade e
fugacidade simultâneas, seu pertencimento necessário ao contexto onde se
encontra e sua autenticidade, o vínculo interno entre unidade e durabilidade.
Única, uma, irrepetível, duradoura e efêmera, aqui-agora e parte de uma
tradição, autêntica: a obra de arte aurática é aquela que torna distante o que
está perto, porque transfigura a realidade, dando-lhe a qualidade da
transcendência”. O que mais fascina na obra de Walter Benjamim é sua capacidade
de exemplificar de maneira simples, suas idéias. Em seu ensaio intitulado “A
obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” escreve: “Em suma, o que é a
aura? É uma figura singular, composta de elementos especiais e temporais: a aparição
única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em
repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um
galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas
montanhas, desse galho”. Na verdade voltamos ao início quando vimos na unidade
do eterno e do novo, pois a aura é também o momento que é singular, é novo e é
eterno.
Marilena Chauí conclui o texto
complementando e esclarecendo e justificando o fato de o artista ser
considerado, outrora, como gênio criador, mágico. Justamente por entender-se
que as significações e características de arte em cada momento histórico não
tiram sua essência, que é a capacidade e a possibilidade de criação e
interpretação: “Passando do divino ao belo, as artes não perderam o que a
religião lhes dera: a aura. Não por acaso, o artista foi visto como gênio
criador inspirado, indivíduo excepcional que cria uma obra excepcional, isto é,
manteve em sua figura o mistério do mágico antigo”.
Arte e Filosofia
Poética e Estética. É o que
separa em momentos pelo qual a filosofia teorizou e buscou compreender a arte
racionalmente. No primeiro momento inaugurado por Platão e Aristóteles, onde
tratam as artes sob a forma da poética. Na obra aristotélica Arte Poética o pensador
grego trata das artes da fala e da escrita, do canto e da dança: a poesia e o
teatro (tragédia e comédia). A palavra poética é a tradução de poiesis,
portanto, para a fabricação. A arte poética estuda as obras de arte como
fabricação de seres e gestos artificiais, isto é, produzido pelos seres
humanos.
No segundo momento conhecemos
Estética, termo utilizado pela primeira vez – para referir-se às artes quanto
ao estudo das obras enquanto criações da sensibilidade, tendo como finalidade o
belo – por Alexander Baumgarten por volta de 1750 que vem do grego aesthesis,
que significa conhecimento sensorial, experiência, sensibilidade. A Estética
pouco a pouco substitui a noção de arte Poética e passa a designar toda a
investigação filosófica que tenha por objeto as artes, uma arte ou ainda,
determinadas obras de arte. Do lado do artista e da obra, busca-se a realização
da beleza; do lado do espectador e receptor, busca-se a reação sob a forma do
juízo de gosto, do bom gosto.
A noção de estética, quando
formulada e desenvolvida nos séculos XVIII e XIX, pressupunha:
1 – que a arte é produto da
sensibilidade, da imaginação e da inspiração do artista e que sua finalidade é
a contemplação;
2 – que a contemplação, do lado
do artista, é a busca do belo (e não do útil, nem do agradável ou prazeroso) e,
do lado do público, é a avaliação ou o julgamento do valor de beleza atingido
pela obra;
3 – que o belo é diferente do
verdadeiro.
Relação entre arte e natureza
A arte é mimésis, ou seja,
imitação. “A arte imita a natureza” defende Aristóteles e segundo o que escreve
o pensador, resulta da atividade do artista imitar outros seres por meio de
imagens, sons, cores, formas, volumes etc., e o valor da obra decorre da
habilidade do artista para encontrar materiais e formas adequados para obter o
efeito imitativo.
O que na verdade não podemos
confundir é imitação com reprodução, pois há uma linha, ainda que tênue, que
separa as duas. Imitar mais assemelha então a representar a realidade para que
“a obra figure algum ser (natural ou sobrenatural), algum sentimento ou emoção,
algum fato (acontecido ou inventado). Harmonia e proporção das formas, dos
ritmos, das cores, das palavras ou dos sons oferecem a finalidade a ser
alcançada e estabelecem as regras a serem seguidas”.
A partir do romantismo (portanto,
após quase 23 séculos de definição de arte como imitação), a filosofia passa
definir obra de arte como criação. E a idéia de inspiração torna explicadora da
atividade artística. A terceira concepção, mais contemporânea, vê a arte como
expressão e construção. “A obra de arte não é pura receptividade imitativa ou
reprodutiva, nem pura criatividade espontânea e livre, mas expressão de um
sentido novo, escondido no mundo, eu um processo de construção do objeto
artístico, em que o artista colabora com a natureza, luta com ela ou contra
ela, separa-se dela ou volta a ela, vence a resistência dela ou dobra-se às
exigências dela”. Essa concepção corresponde ao momento da sociedade ao momento
da sociedade industrial, da técnica transformada em tecnologia e da ciência
como construção rigorosa do real. “Arte é trabalho da expressão que constrói um
sentido novo (a obra) e o institui como parte da cultura”.
O artista é um ser social que
reflete na sociedade, para a sociedade, pela sociedade seja para criticá-la,
para afirmá-la ou ainda para superá-la e o faz exprimindo-se, expressando-se,
comunicando-se através de seu modo de estar no mundo na companhia de outros
seres humanos.
Relação entre arte e humano
Também é na Grécia que iniciam as
discussões referentes à relação entre o humano/arte/humano. Platão considera a
arte conhecimento e essa concepção logo vem ser alterada por Aristóteles, que
também sofrerá mudanças no decorrer da história, que considera a arte como
atividade prática. Para Platão a arte está no mundo mais baixo do conhecimento,
pois, considera imitação das coisas sensíveis sendo elas próprias imitações
imperfeitas. Na Renascença, porém, o conceito de Platão volta à tona, mas com
um novo sentido: e o que é afirmado então é que a “a arte uma forma alta de
acesso ao conhecimento ficando abaixo apenas da filosofia e do êxtase místico”.
Essa mudança se deve principalmente porque na Renascença redescobrem-se os
escritos Hermético em que diz que o Deus criou o Homem dotado de criatividade o
que lhe dá acesso ao conhecimento das formas secretas das coisas. E é
justamente no Romantismo é que a arte como expressão encontra seu apogeu quando
é concebida como o “órgão geral da filosofia”, sob três aspectos diferentes:
para alguns, a arte é a única via de acesso ao universal e ao absoluto; para
outros, como Hegel, as artes são a primeira etapa da vida consciente do
Espírito, preparando a religião e a filosofia; e outros, enfim, a concebem como
o único caminha para reatar o singular e o universal, o particular e o geral,
pois, através da singularidade de uma obra artística, temos acesso ao
significado universal de alguma realidade. Essa última perspectiva é a que
encontramos, por exemplo, no filósofo Martin Heidegger, para quem a obra de
arte é desvelamento e desvendamento da verdade.
Funalidades-funções da arte
Na história das artes nos
deparamos com duas concepções ligadas às finalidades artística: a concepção
pedagógica e a expressiva. Novamente, porém, vamos encontrar raízes profundas
na Grécia Antiga onde Platão e Aristóteles encontram formulações: Platão, na
República defende que a cidade perfeita é aquela onde são excluídos poetas,
pintores e escultores porque “imitam as coisas sensíveis e oferecem uma imagem
desrespeitosas dos deuses, tomados pelas paixões humanas; porém, coloca dança e
música como disciplinas fundamentais na formação do corpo e da alma”.
Aristóteles, na Arte poética, desenvolve de maneira aprofundada o papel
pedagógico das artes onde especialmente a tragédia que segundo o filósofo, tem
a função de produzir a catarse, ou seja, a purificação espiritual dos
espectadores além de proporcionar a comoção e o horror. Essa função catártica é
atribuída sobretudo à música. Na Arte poética Aristóteles escreve: A música não
deve ser praticada por um só tipo de benefício que dela pode derivar, mas por
usos múltiplos, já que pode servir para a educação, para proporcionar a catarse
e, em terceiro lugar, para o repouso da alma e a suspensão de sua fadigas. A
autora faz então uma ligação entre Aristóteles e Shakespeare quando lemos em O
mercador de Veneza ouvimos, segundo Chauí, o ecoar das palavras do filósofo
grego:
Todo homem que em si não traga a
música
E a quem não toquem doces sons
concordes,
É de traições, pilhagens,
armadilhas.
Seu espírito vive em noite
obscura,
Seus afetos são negros como o
Érebo:
Não se confie em homem tal...
A concepção pedagógica da arte
reaparece em Kant quando afirma que “a função mais alta da arte é produzir o
sentimento do sublime”
Arte e sociedade
As mudanças ou transformações
sofridas pelas artes se vistas de maneira mais cuidadosa e atenciosa, mostram
que na verdade essas mudanças/transformações, ocorrem apenas de dois tipos: as
alterações quanto ao fazer artístico diferenciando-se em escolas de arte
conhecidas também como estilos artísticos como pro exemplo o barroco, clássico,
romântico, impressionista, futurista, surrealista etc.
As primeiras discussões sobre
arte e sociedade trouxeram duas vertentes filosóficas opostas: a primeira
afirma que arte só arte se for pura, ou seja, se não estiver compromissada com
interesses de outras naturezas que não sejam artísticos como a política, a
economia, a história. Trata-se portanto da defesa da “arte pela arte”. A outra
vertente defende uma arte engajada, na qual o artista toma posição diante da
sociedade e encara o seu ofício como maneira prática de lutar em benefício da
sociedade auxiliando na transformação e melhoria da realidade.
Diferença entre Arte e Estética:
Arte: vem do latim ARS e significa TALENTO / SABER FAZER. Hegel define a Arte como "o meio entre a insuficiente existência objetiva e a representação puramente interior: ela nos fornece os objetos mesmos, mas tirados do interior... limita nosso interesse à abstrata aparência que se apresenta a um olhar puramente contemplativo".
Estética: vem do grego AISTHETIKÓS e significa PERCEBER / SENTIR. O termo "estética" foi criado por Baumgarten no séc. XVIII para designar o estudo da sensação, "a ciência do belo", referindo-se a empiria do gosto subjetivo, àquilo que agrada aos sentidos, mas elaborando uma ontologia do belo.
Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
1º Ano / 4º Bim.
A LINGUAGEM
A importância da linguagem
Na abertura da sua obra Política,
Aristóteles afirma que somente o homem é um "animal político", isto
é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros
animais, escreve Aristóteles, possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e
prazer, mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mau,
o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna
possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes.
Segue a mesma linha o raciocínio
de Rousseau no primeiro capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas:
A palavra distingue os homens dos
animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um
homem antes que ele tenha falado.
Escrevendo sobre a teoria da
linguagem, o linguista Hjelmslev afirma que "a linguagem é inseparável do
homem, segue-o em todos os seus atos", sendo "o instrumento graças ao
qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus
esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia
e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana."
Prosseguindo em sua apreciação
sobre a importância da linguagem, Rousseau considera que a linguagem nasce de
uma profunda necessidade de comunicação:
Desde que um homem foi
reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio,
o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos
fizeram-no buscar meios para isso.
Gestos e vozes, na busca da
expressão e da comunicação, fizeram surgir a linguagem.
Por seu turno, Hjelmslev afirma
que a linguagem é "o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio
nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o
conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador."
A linguagem, diz ele, está sempre
à nossa volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos,
acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do
pensamento, "mas sim um fio profundamente tecido na trama do
pensamento", é "o tesouro da memória e a consciência vigilante
transmitida de geração a geração".
A linguagem é, assim, a forma
propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da
vida social e política, do pensamento e das artes.
No entanto, no diálogo Fedro,
Platão dizia que a linguagem é um pharmakon. Esta palavra grega, que em
português se traduz por poção, possui três sentidos principais: remédio, veneno
e cosmético.
Ou seja, Platão considerava que a
linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo
diálogo e pela comunicação, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender
com os outros. Pode, porém, ser um veneno quando, pela sedução das palavras,
nos faz aceitar, fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais
palavras são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser cosmético,
maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras. A
linguagem pode ser conhecimento-comunicação, mas também pode ser
encantamento-sedução.
Essa mesma ideia da linguagem
como possibilidade de comunicação-conhecimento e de
dissimulação-desconhecimento aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre
de Babel [Gn 11.1-9], quando Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo
com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que
impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos e
guerras. A pluralidade das línguas é explicada, na Escritura Sagrada, como
punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que
alcançasse o céu, isto é, ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar
semelhante ao da divindade. "Que sejam confundidos", disse Deus.
A força da linguagem
Podemos avaliar a força da
linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões.
A palavra grega mythos, como já
vimos, significa narrativa e, portanto, linguagem. Trata-se da palavra que
narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas (o fogo, a
agricultura, a caça, a pesca, o artesanato, a guerra) e da vida do grupo social
ou da comunidade. Pronunciados em momentos especiais – os momentos sagrados ou
de relação com o sagrado -, os mitos são mais do que uma simples narrativa; são
a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a
realidade e a interpretam.
O mito tem o poder de fazer com
que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. O melhor exemplo dessa
força criadora da palavra mítica encontra-se na abertura da Gênese, na Bíblia
judaico-cristã, em que Deus cria o mundo do nada, apenas usando a linguagem:
"E Deus disse: faça-se!", e foi feito. Porque Ele disse, foi feito. A
palavra divina é criadora.
Também vemos a força realizadora
ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas. Por exemplo, na missa
cristã, o celebrante, pronunciando as palavras "Este é o meu corpo" e
"Este é o meu sangue", realiza o mistério da Eucaristia, isto é, a
encarnação de Deus no pão e no vinho. Também nos rituais indígenas e africanos,
os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas
palavras corretas, pronunciadas pelo celebrante.
A linguagem tem, assim, um poder
encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano, trazer
os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo, ou, como acontece com os
místicos em oração, tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado.
Eis por que, em quase todas as religiões, existem profetas e oráculos, isto é,
pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divinas aos
humanos.
Esse poder encantatório da
linguagem aparece, por exemplo, quando vemos (ou lemos sobre) rituais de
feitiçaria: a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas
acontecerem pelo simples fato de, em circunstâncias certas, pronunciarem
determinadas palavras. É assim que, nas lendas sobre o rei Artur e os
cavaleiros da Távola Redonda, os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino
das guerras, pronunciando palavras especiais dotadas de poder. Também nos
contos infantis há palavras poderosas ("Abre-te, Sésamo!",
"Shazam!") e encantatórias ("Abracadabra"). Essa dimensão
maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta
Federico Fellini no filme Oito e Meio, quando a personagem adulta pronuncia as
palavras "Asa Nisa Nasa", trazendo de volta o passado.
As palavras assumem o poder
contrário também, isto é, criam tabus. Ou seja, há coisas que não podem ser
ditas porque, se forem, não só trazem desgraças, como ainda desgraçam quem as
pronunciar. As palavras-tabus existem nos contextos religiosos de várias
sociedades (por exemplo, em muitas sociedades não se deve pronunciar a palavra
"demônio" ou "diabo", porque este aparece; em vez disso se
diz "o cão", "o demo", "o tinhoso"). As
palavras-tabus não existem apenas na esfera religiosa, mas também nos
brinquedos infantis, quando certas palavras são proibidas a todos os membros do
grupo, sob pena de punição para quem as pronunciar.
Existem, ainda, palavras-tabus na
vida social, sob os efeitos da repressão dos costumes, sobretudo os que se
referem a práticas sexuais. Assim, para certos grupos sociais de nossa
sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira, até os anos 60 do século
passado, eram proibidas palavras como puta, homossexual, aborto, amante,
masturbação, sexo oral, sexo anal, etc. Tais palavras eram pronunciadas em
meios masculinos e em locais privados ou íntimos. Também palavras de cunho
político tendem a tornar-se quase tabus: revolucionário, terrorista,
guerrilheiro, socialista, comunista, etc.
O poder mágico-religioso da
palavra aparece ainda num outro contexto: o do direito. Na origem, o direito
não era um código de leis referentes à propriedade (de coisas ou bens, do corpo
e da consciência), nem referentes à vida política (impostos, constituições,
direitos sociais, civis, políticos), mas era um ato solene no qual o juiz
pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz.
O direito era uma linguagem
solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em
litígio. Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Donde as
expressões "Dou minha palavra" ou "Ele deu sua palavra",
para indicar o juramento feito e a "palavra empenhada" ou
"palavra de honra". É por isso também que, até hoje, nos tribunais,
se faz o(a) acusado(a) e as testemunhas responderem à pergunta: "Jura
dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade?", dizendo:
"Juro". Razão pela qual o perjúrio – dizer o falso, sob juramento de
dizer o verdadeiro – é considerado crime gravíssimo.
Nas sociedades menos complexas do
que a nossa, isto é, nas sociedades que são comunidades, onde todos se conhecem
pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência, a palavra
dada e empenhada é suficiente, pois, quando alguém dá sua palavra, dá sua vida,
sua consciência, sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito
com a morte ou com o acordo da outra parte. É por isso que, nos casamentos
religiosos, em que os noivos fazem parte da comunidade, basta que digam
solenemente ao celebrante "Aceito", para que o casamento esteja
concretizado.
Independentemente de acreditarmos
ou não em palavras místicas, mágicas, encantatórias ou tabus, o importante é
que existam, pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem.
Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes
de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos
as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco.
A outra dimensão da linguagem
Para referir-se à palavra e à
linguagem, os gregos possuíam duas palavras: mythos e logos. Diferentemente do
mythos, logos é uma síntese de três palavras ou idéias: fala/palavra,
pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra racional do conhecimento do
real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio
e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e
necessários entre os seres).
É a palavra-pensamento
compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a
palavra-pensamento de alguma coisa: o "logia" que colocamos no final
de palavras como cosmologia, mitologia, teologia, ontologia, biologia,
psicologia, sociologia, antropologia, tecnologia, filologia, farmacologia, etc.
Do lado do logos desenvolve-se a
linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras, agora, são
conceitos ou ideias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade.
Essa dupla dimensão da linguagem
(como mythos e logos) explica por que, na sociedade ocidental, podemos
comunicar-nos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e
opostos: o da palavra solene, mágica, religiosa, artística, e o da palavra
leiga, científica, técnica, puramente racional e conceitual. Não por acaso,
muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se
torna científico quando uma explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica
cede lugar a uma explicação conceitual, causal, metódica, demonstrativa,
racional.
A origem da linguagem
Durante muito tempo a Filosofia
preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem.
Uma primeira divergência sobre o
assunto surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens (existe por
natureza) ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras
possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões
consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade
poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão
levou, séculos mais tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de
expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem
física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela
palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições
históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros
termos, são fatos culturais. Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma
estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna, passando a funcionar
como se fosse algo natural, isto é, como algo que possui suas leis e princípios
próprios, independentes dos sujeitos falantes que a empregam.
Perguntar pela origem da
linguagem levou a quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por
imitação, isto é, os humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza (dos
animais, dos rios, das cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos,
etc.). A origem da linguagem seria, portanto, a onomatopéia ou imitação dos
sons animais e naturais;
2. a linguagem nasce por imitação
dos gestos, isto é, nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o
gesto indica um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de
sons e estes se tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos;
3. a linguagem nasce da
necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a
necessidade de reunir-se em grupo para defender-se das intempéries, dos animais
e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras, formando um
vocabulário elementar e rudimentar, que, gradativamente, tornou-se mais
complexo e transformou-se numa língua;
4. a linguagem nasce das emoções,
particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo,
compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando novamente
Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas:
Não é a fome ou a sede, mas o
amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram
as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e
apaixonadas antes de serem simples e metódicas.
Assim, a linguagem, nascendo das
paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto,
tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes.
Assim como a pintura nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro
cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos.
Essas teorias não são
excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas
fontes ou modos de expressão, e os estudos de Psicologia Genética (isto é, da
gênese da percepção, imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças)
mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se.
Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de
significação, ou quando passa do expressivo ao significativo. Um gesto ou um
grito exprimem, por exemplo, medo; palavras, frases e enunciados significam o
que é sentir medo, dão conteúdo ao medo.
O que é a linguagem?
A linguagem é um sistema de
signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e
para a expressão de ideias, valores e sentimentos. Embora tão simples, essa
definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos
têm-se ocupado desde há muito tempo. Essa definição afirma que:
1. a linguagem é um sistema, isto
é, uma totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que
pode ser conhecido;
2. a linguagem é um sistema de
sinais ou de signos, isto é, os elementos que formam a totalidade lingüística
são um tipo especial de objetos, os signos, ou objetos que indicam outros,
designam outros ou representam outros. Por exemplo, a fumaça é um signo ou
sinal de fogo, a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida, manchas na pele de um
determinado formato, tamanho e cor são signos de sarampo ou de catapora, etc.
No caso da linguagem, os signos são palavras e os componentes das palavras
(sons ou letras);
3. a linguagem indica coisas,
isto é, os signos linguísticos (as palavras) possuem uma função indicativa ou
denotativa, pois como que apontam para as coisas que significam;
4. a linguagem tem uma função
comunicativa, isto é, por meio das palavras entramos em relação com os outros,
dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos,
ensinamos e aprendemos, etc.;
5. a linguagem exprime
pensamentos, sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e
de expressão, sendo neste caso conotativa, ou seja, uma mesma palavra pode
exprimir sentidos ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a
emprega, do sujeito que a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi
empregada ou do contexto em que é usada. Assim, por exemplo, a palavra água, se
for usada por um professor numa aula de química, conotará o elemento químico
que corresponde à fórmula H2O; se for empregada por um poeta, pode conotar rios,
chuvas, lágrimas, mar, líquido, pureza, etc.; se for empregada por uma criança
que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede.
A definição nos diz, portanto,
que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa,
expressiva e conotativa.
No entanto, essa definição não
nos diz várias coisas. Por exemplo, como a fala se forma em nós? Por que a
linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias (internas ao
pensamento)? Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo
cientista, pelo filósofo, pelo poeta ou pelo político? Como a linguagem pode
ser fonte de engano, de mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se
passa exatamente quando dialogamos com alguém? O que é escrever? E ler? Como
podemos aprender uma outra língua?
Na resposta a várias dessas
perguntas, vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos
a razão, a verdade, a percepção ou a imaginação, qual seja, a diferença entre
empiristas e intelectualistas.
Empiristas e intelectualistas
diante da linguagem
Para os empiristas, a linguagem é
um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição
e que constituem imagens verbais (as palavras).
As imagens corporais são de dois
tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando
aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos
anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando,
graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a
de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer
a grafia dos sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em
função da frequência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa
capacidade motriz e sensorial. A palavra ou imagem verbal é uma síntese de
imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.
O que levou a essa concepção
empirista da linguagem foi o estudo médico de "perturbações da
linguagem": a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as
palavras disponíveis na língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para
escrever determinadas palavras); a surdez verbal (ouvir as palavras sem
conseguir compreende-las) e a cegueira verbal (ler sem conseguir entender).
Os médicos que estudaram essas
perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que,
portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual
não temos consciência (desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos
consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o
sentido das palavras. A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos
psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.
Os intelectualistas, porém,
apresentam uma concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a
possibilidade para falar, ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia
e fisiologia) afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento
ou de nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é apenas a tradução auditiva,
oral, gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A
linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos,
para transmitir e comunicar ideias abstratas e valores. A palavra, dizem eles,
é uma representação de um pensamento, de uma ideia ou de valores, sendo
produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa
finalidade.
O pensamento puro seria
silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas
poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que o pensamento
procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas,
porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo
e tal sentido é a ideia formada pelo pensamento para representar ou indicar as
coisas.
A grande prova dos
intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida
cega, surda e muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter
visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a
linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais,
Helen Keller jamais teria chegado à linguagem.
Mas chegou. E chegou quando
compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das
mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual
segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água;
quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra
sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser
um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma
atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos.
As concepções empirista e
intelectualista, apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem
como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos
linguísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas;
2. ambas consideram a linguagem
como um instrumento de representação das coisas e das ideias, ou seja, as
palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo.
Esses dois pontos de concordância
fazem com que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos conotativos ou a
função conotativa da linguagem seja considerada algo perturbador e negativo. Em
outros termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras
assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do
contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado perturbador
porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e as ideias são sempre o
que elas são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido
para indicar claramente as coisas e representar claramente as ideias.
Por esse motivo, periodicamente,
aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em
"purificar" a linguagem para que ela sirva docilmente às
representações conceituais. Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para
o pensamento é a das ciências e, particularmente, a da matemática e a da
física.
Purificar a linguagem
Uma dessas correntes filosóficas
desenvolveu-se no século passado com o nome de positivismo lógico. Os
positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
1. a linguagem natural, isto é,
aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa, confusa, mescla de elementos
afetivos, volitivos, perceptivos e imaginativos;
2. a linguagem lógica, isto é,
uma linguagem purificada, formalizada (ou seja, com enunciados sem conteúdo e
avaliadores do conteúdo das linguagens científicas e filosóficas), inspirada na
matemática e sobretudo na física.
Essa linguagem obedecia a
princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações
chamadas cálculos simbólicos (semelhantes às operações da matemática), que
permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se
ênfase à sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade
representativa e indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.
A linguagem lógica era uma
metalinguagem, isto é, uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e
sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros
ou falsos. Assim, por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos: "O
livro é de autoria de José Antônio Silva" e, na metalinguagem lógica,
diremos: "A proposição ‘O livro é de autoria de José Antônio Silva’ é uma
proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x, y,
z".
No entanto, descobriu-se, pouco a
pouco, que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo
nem representativo, e, apesar disto, eram verdadeiras. Descobriu-se também que
havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados
lógicos e tipo matemático e físico. Descobriu-se, ainda, que a linguagem usa
certas expressões para as quais não existe denotação. Por exemplo, as
preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade.
Além disso, descobriu-se que a
redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer
verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia, a literatura, a
história, bem como várias ciências humanas, isto é, todas as linguagens que são
profundamente conotativas, para as quais a multiplicidade de sentido das
palavras e das coisas é sua própria razão de ser.
Crítica ao empirismo e ao
intelectualismo
As concepções empiristas e
intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no
campo da psicologia.
Os psicólogos Goldstein e Gelb
fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas. Por
exemplo, ordena-se a um afásico: "Coloque nesta pilha todas as fitas azuis
que você encontrar nesta caixa". O afásico inicia a separação. Ao
encontrar uma fita azul-claro ele a coloca na pilha das fitas azuis, conforme
lhe foi dito, mas também passa a colocar ali fitas verde-claro, rosa-claro e
lilás-claro.
Os dois psicólogos observaram,
assim, que a palavra azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o
afásico e que, portanto, seu problema de linguagem era também um problema de
pensamento. No entanto, do ponto de vista cerebral ou anatômico, a parte do
cérebro destinada à inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso,
compreendeu-se que os empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um
mero conjunto de imagens verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da
realidade e inseparável do pensamento.
Esses estudos, porém, não
reforçaram a concepção intelectualista, como poderíamos supor. De fato, basta
tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para
compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras,
não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem
pensamentos, mas os envolvem e os englobam. É justamente por isso que a criança
aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo, pois, para ela, uma coisa se torna
conhecida e pensável ao receber um nome. Como escreveu Merleau-Ponty, a
linguagem é o corpo do pensamento.
A linguística e a linguagem
Durante o século XIX, o estudo da
linguagem ou linguística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem
e das línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua como
resultado ou efeito de causas situadas no passado.
A linguagem era estudada sob duas
perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo estudo
das raízes, com o propósito de chegar a uma única língua original, mãe ou
matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que estudava
comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias
linguísticas e chegar à língua-mãe original.
Nesses estudos, retomava-se a
discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era
comum aos filólogos e gramáticos a ideia de que as línguas se transformam no
tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralinguísticos
(migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).
Tais estudos, porém, viram-se
diante de problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o
aparecimento do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural
e o singular, aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as
línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos.
Essa descoberta teve resultados
curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que
cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o
espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos
(como a alemã); línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o
latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o "caráter da língua"
segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.
A partir do século XX, uma nova
concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais
são:
● a linguagem é constituída pela
distinção entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e
um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios
próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua, tendo
existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da
língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra
ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a
minha;
● a língua é uma totalidade
dotada de sentido no qual o todo confere sentido às partes, isto é, as partes
não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo
da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por
exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons
tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual não
operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l
indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r; os japoneses
usam r indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r). Os
signos são os elementos da língua; são valores e não coisas ou entidades, isto
é, são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais
signos;
● numa língua, distinguem-se
signo e significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal
material da língua (r, l, p, b, q, g, por exemplo), enquanto o significado são
os conteúdos ou sentidos imateriais (afetivos, volitivos, perceptivos,
imaginativos, evocativos, literários, científicos, retóricos, filosóficos,
políticos, religiosos, etc.) veiculados pelos signos; o significante é uma
cadeia ou um grupo organizado de signos (palavras, frases, orações,
proposições, enunciados) que permitem a expressão dos significados e garantem a
comunicação;
● a relação dos signos ou
significantes com as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez
constituída a língua como sistema de relações entre signos/significantes e
significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou
comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes da língua.
Assim, por exemplo, a distinção entre pa e ba, pata e bata é convencional, mas
uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável;
● como as partes (signos ou
significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o
todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas
por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças
internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em
português, existem os signos p e b, d e t porque suas diferenças são
pertinentes para o sentido das palavras (dizer pata e bata, dente e tente é
dizer sentidos diferentes); também existe a oposição pertinente entre o r e o
l, mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso,
como vimos, tais signos não existem nessas línguas.
Por relação com sua própria
língua, quando um japonês fala o português, é levado a usar sempre o r (que
corresponde a um som ou signo diferencial existente em japonês, isto é, faz
sentido em japonês) e a substituir o l por r. Quando um chinês fala o português
ocorre exatamente o contrário, prevalece o l porque este som e signo tem
relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em inglês, não existe o
signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português, tende a usar an e am
porque são signos-sons que fazem sentido em inglês. A língua, portanto, é feita
dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e
que a língua é uma estrutura diacrítica;
● a língua é um código (conjunto
de regras que permitem produzir informação e comunicação) e se realiza através
de mensagens, isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que veiculam informações e
se comunicam de modo específico e particular (a mensagem possui um emissor,
aquele que emite ou envia a mensagem, e um receptor, aquele que recebe e
decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
● o sujeito falante possui duas
capacidades: a competência (isto é, sabe usar a língua) e a performance (isto
é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é a
participação do sujeito em uma comunidade linguística e a performance são os
atos de linguagem que realiza;
● a língua se realiza em duas
dimensões: a sincronia, ou seja, o todo da língua tomado na simultaneidade ou
no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou seja, a língua vista
sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de sua história;
● a língua é inconsciente, isto
é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus
princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a
empregamos sem necessidade de conhece-la cientificamente.
Alguns exemplos poderão
ajudar-nos a compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de
xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por
diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código
com suas regras próprias, princípios e leis, e cada partida é a maneira como
jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do
jogo (a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a
língua respeitando o código, mas sem conhece-lo conscientemente, enquanto os
jogadores precisam conhecer o código para poder jogar).
O jogo existe antes e depois de
cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados
diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os
jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os
lances um do outro, respondendo a cada um deles.
A linguística veio mostrar algo
muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou
traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os
intelectualistas.
Por exemplo, em inglês, é
possível dizer "The man I love". Quando traduzimos para o português
temos: "O homem que amo". Observamos que, em inglês, parece
"faltar" uma palavra: o "que". Notamos também que em inglês
parece "sobrar" uma palavra: o "I", o "eu", que não
usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e nem
sobra nada.
Este sentimento de falta ou sobra
mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário, mas
de estrutura linguística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da
palavra francesa fromage para o português, queijo, temos a impressão de que
passamos sem problema de uma língua para outra. Mas não é o caso.
Quando um inglês usa cheese, ele
está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo mais
duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno, ao
dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região
onde mora, da hora e do dia em que vai comer o queijo, sempre acompanhado de
pão e vinho.
Para um inglês e para um francês,
queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para nós,
brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com goiabada ou
com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer
cheese não é dizer fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer cheese nem
queijo; dizer queijo não é dizer cheese nem fromage.
Esse segundo exemplo explica o
que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um
signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional, mas, uma vez
criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese e não
é fromage nem queijo).
Esse exemplo nos mostra também
que uma língua é algo social, histórico, determinado por condições específicas
de uma sociedade e de uma cultura.
A experiência da linguagem
Dizer que somos seres falantes
significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma
instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres
sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao
pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a
habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa:
emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como,
experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, ideias.
Após o caminho feito até aqui,
podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns
acréscimos.
Em primeiro lugar, teremos que especificar
melhor que tipo de signo é o signo linguístico. Por que uma palavra é
diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a
diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra fumaça, que
pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A
palavra fumaça, porém, é um símbolo, isto é, algo que indica, representa,
exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela.
O símbolo é um análogo (a
bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada,
representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que
não são palavras: coisas materiais, ideias, pessoas, valores, seres
inexistentes, etc. A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação
com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
Em segundo lugar, temos que
especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou
denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar
com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que
a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como
se dá essa relação?
Essa pergunta, como vimos, era
central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi
responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da
Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com
elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se
numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e
explicam verdadeiramente a realidade?
Tradicionalmente, dizia-se que a
linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal <-> coisa indicada
(realidade)
signo verbal <-> ideia,
conceito, valor (pensamento)
No entanto, é possível perceber
que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal
indica alguma coisa ou alguma ideia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo
ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma
mesma palavra indicando coisas e ideias diferentes.
Tomemos um exemplo a que já nos
referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo
filósofo alemão Frege. "Estrela da manhã" e "estrela da
tarde" indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na
estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas
essas expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido
de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo
planeta. Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam,
isto é, referem-se aos sentidos dessa coisa.
Imaginemos ou recordemos a leitura
de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque
referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a ideias que já possuímos e
ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai
ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos ideias
que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e história
própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o
qual estamos habituados a usa-las todo dia.
Uma realidade foi criada e
penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é
possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem
sinais para indicar coisas e ideias já existentes? Com o romance descobrimos
que as palavras se referem a significações, inventam significações, criam
significações.
Imaginemos ou recordemos um
diálogo. Quantas vezes conversando com alguém, dizemos: "Puxa! Eu nunca
tinha pensado nisso!", ou então: "Você sabe que, agora, eu entendo
melhor uma ideia que tinha, mas que não entendia muito bem?", ou ainda:
"Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que
sabia".
Como essas frases são possíveis?
É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto
falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto
os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar
porque se refere a significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já
conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.
Esses exemplos nos levam a
considerar a linguagem sob uma forma ternária: palavra ou signo significante
<-> sentido ou significação; significado <-> realidade ou mundo
(coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais
O mundo suscita sentidos e
palavras, as significações levam à criação de novas expressões linguísticas, a
linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas. Há um
vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as
significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são
inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros.
A linguagem:
● refere-se ao mundo através das
significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da
palavra;
● relaciona-se com sentidos já
existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o
pensamento através das palavras;
● exprime e descobre significados
e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;
● tem o poder de suscitar
significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e,
por isso, a literatura é possível.
A linguagem revela nosso corpo
como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e
significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como
dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As
palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:
A palavra, longe de ser um
simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula
significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito,
mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem não traduz imagens
verbais de origem motora e sensorial, nem representa idéias feitas por um
pensamento silencioso, mas encarna as significações.
Linguagem simbólica e linguagem
conceitual
A diferença entre linguagem
simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessar-nos agora.
Fundamentalmente, a linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças entre
palavras e sons, entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de uma
palavra ou de um conjunto de palavras para substituir outras e criar um sentido
poético para a expressão).
A linguagem simbólica realiza-se
principalmente como imaginação. A linguagem conceitual procura evitar a
analogia e a metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e
não figurado ou figurativo. Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja
puramente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial, mas não
possui uma natureza imaginativa ou imagética.
A linguagem simbólica (dos mitos,
da religião, da poesia, do romance, do teatro) e a linguagem conceitual (das
ciências, da filosofia) diferem sob os seguintes aspectos:
● a linguagem simbólica é
fortemente emotiva e afetiva, enquanto a linguagem conceitual procura falar das
emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio
deles;
● a linguagem simbólica oferece
sínteses imediatas (imagens), enquanto a linguagem conceitual procede por
desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos, fazendo com que
acompanhemos cada passo da análise e da síntese;
● a linguagem simbólica nos
oferece palavras polissêmicas, isto é, carregadas de múltiplos sentidos
simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos
opostos e contrários; a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a
polissemia e a conotação, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido
próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é
empregada;
● a linguagem simbólica leva-nos
para dentro dela, arrasta-nos para seu interior pela força de seu sentido, de
suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem
conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos,
raciocínios e provas. A linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem
conceitual exige o trabalho lento do pensamento;
● a linguagem simbólica nos dá a
conhecer o mundo criando um outro, análogo ao nosso, porém mais belo ou mais
terrível do que o nosso, mais justo ou mais violento do que o nosso, mais
antigo ou mais novo do que o nosso, mais visível ou mais oculto do que o nosso;
a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido,
ultrapassando suas aparências e seus acidentes;
● a linguagem simbólica,
privilegiando a memória e a imaginação, nos diz como as coisas ou os homens
poderiam ter sido ou poderão ser, voltando-se para um possível passado ou para
um possível futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente, fala
do necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura também as
linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como
possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.
RESUMINDO…
A linguagem em sentido amplo
(isto é, englobando língua, fala e palavra) é constituída por quatro fatores
fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos,
neurológicos, sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar,
escutar, escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que
determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos.
Assim, o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes,
bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a
momentos diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos
(emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência) que
criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como
criam nossa capacidade para a performance linguística, seja ela cotidiana,
artística, científica ou filosófica;
4. fatores linguísticos
propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que
determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de
criar e compreender significações.
Esses fatores nos dizem por que
existe linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. É
a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a
linguagem, mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento:
● a linguagem não é mecanismo
psicomotor (os fatores 1 e 3 apresentam as condições biológicas e psicológicas
para haver linguagem, mas não qual é a natureza da experiência da palavra);
● a linguagem não é simples
relação binária entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária,
na qual os signos são símbolos que veiculam significações;
● a linguagem não traduz
pensamentos, mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos
valores;
● a linguagem é uma forma de
nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma
dimensão de nossa existência;
● a linguagem, como a percepção e
a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído
e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias, pois, como
disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear nosso
conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É,
assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o
instrumento do engano, do falso e da mentira;
● a linguagem cria, interpreta e
decifra significações, podendo faze-lo miticamente ou logicamente, magicamente
ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente.
Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
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