A LINGUAGEM
A importância da linguagem
Na abertura da sua obra Política,
Aristóteles afirma que somente o homem é um "animal político", isto
é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros
animais, escreve Aristóteles, possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e
prazer, mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mau,
o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna
possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes.
Segue a mesma linha o raciocínio
de Rousseau no primeiro capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas:
A palavra distingue os homens dos
animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um
homem antes que ele tenha falado.
Escrevendo sobre a teoria da
linguagem, o linguista Hjelmslev afirma que "a linguagem é inseparável do
homem, segue-o em todos os seus atos", sendo "o instrumento graças ao
qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus
esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia
e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana."
Prosseguindo em sua apreciação
sobre a importância da linguagem, Rousseau considera que a linguagem nasce de
uma profunda necessidade de comunicação:
Desde que um homem foi
reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio,
o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos
fizeram-no buscar meios para isso.
Gestos e vozes, na busca da
expressão e da comunicação, fizeram surgir a linguagem.
Por seu turno, Hjelmslev afirma
que a linguagem é "o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio
nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o
conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador."
A linguagem, diz ele, está sempre
à nossa volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos,
acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do
pensamento, "mas sim um fio profundamente tecido na trama do
pensamento", é "o tesouro da memória e a consciência vigilante
transmitida de geração a geração".
A linguagem é, assim, a forma
propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da
vida social e política, do pensamento e das artes.
No entanto, no diálogo Fedro,
Platão dizia que a linguagem é um pharmakon. Esta palavra grega, que em
português se traduz por poção, possui três sentidos principais: remédio, veneno
e cosmético.
Ou seja, Platão considerava que a
linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo
diálogo e pela comunicação, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender
com os outros. Pode, porém, ser um veneno quando, pela sedução das palavras,
nos faz aceitar, fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais
palavras são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser cosmético,
maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras. A
linguagem pode ser conhecimento-comunicação, mas também pode ser
encantamento-sedução.
Essa mesma ideia da linguagem
como possibilidade de comunicação-conhecimento e de
dissimulação-desconhecimento aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre
de Babel [Gn 11.1-9], quando Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo
com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que
impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos e
guerras. A pluralidade das línguas é explicada, na Escritura Sagrada, como
punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que
alcançasse o céu, isto é, ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar
semelhante ao da divindade. "Que sejam confundidos", disse Deus.
A força da linguagem
Podemos avaliar a força da
linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões.
A palavra grega mythos, como já
vimos, significa narrativa e, portanto, linguagem. Trata-se da palavra que
narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas (o fogo, a
agricultura, a caça, a pesca, o artesanato, a guerra) e da vida do grupo social
ou da comunidade. Pronunciados em momentos especiais – os momentos sagrados ou
de relação com o sagrado -, os mitos são mais do que uma simples narrativa; são
a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a
realidade e a interpretam.
O mito tem o poder de fazer com
que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. O melhor exemplo dessa
força criadora da palavra mítica encontra-se na abertura da Gênese, na Bíblia
judaico-cristã, em que Deus cria o mundo do nada, apenas usando a linguagem:
"E Deus disse: faça-se!", e foi feito. Porque Ele disse, foi feito. A
palavra divina é criadora.
Também vemos a força realizadora
ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas. Por exemplo, na missa
cristã, o celebrante, pronunciando as palavras "Este é o meu corpo" e
"Este é o meu sangue", realiza o mistério da Eucaristia, isto é, a
encarnação de Deus no pão e no vinho. Também nos rituais indígenas e africanos,
os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas
palavras corretas, pronunciadas pelo celebrante.
A linguagem tem, assim, um poder
encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano, trazer
os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo, ou, como acontece com os
místicos em oração, tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado.
Eis por que, em quase todas as religiões, existem profetas e oráculos, isto é,
pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divinas aos
humanos.
Esse poder encantatório da
linguagem aparece, por exemplo, quando vemos (ou lemos sobre) rituais de
feitiçaria: a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas
acontecerem pelo simples fato de, em circunstâncias certas, pronunciarem
determinadas palavras. É assim que, nas lendas sobre o rei Artur e os
cavaleiros da Távola Redonda, os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino
das guerras, pronunciando palavras especiais dotadas de poder. Também nos
contos infantis há palavras poderosas ("Abre-te, Sésamo!",
"Shazam!") e encantatórias ("Abracadabra"). Essa dimensão
maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta
Federico Fellini no filme Oito e Meio, quando a personagem adulta pronuncia as
palavras "Asa Nisa Nasa", trazendo de volta o passado.
As palavras assumem o poder
contrário também, isto é, criam tabus. Ou seja, há coisas que não podem ser
ditas porque, se forem, não só trazem desgraças, como ainda desgraçam quem as
pronunciar. As palavras-tabus existem nos contextos religiosos de várias
sociedades (por exemplo, em muitas sociedades não se deve pronunciar a palavra
"demônio" ou "diabo", porque este aparece; em vez disso se
diz "o cão", "o demo", "o tinhoso"). As
palavras-tabus não existem apenas na esfera religiosa, mas também nos
brinquedos infantis, quando certas palavras são proibidas a todos os membros do
grupo, sob pena de punição para quem as pronunciar.
Existem, ainda, palavras-tabus na
vida social, sob os efeitos da repressão dos costumes, sobretudo os que se
referem a práticas sexuais. Assim, para certos grupos sociais de nossa
sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira, até os anos 60 do século
passado, eram proibidas palavras como puta, homossexual, aborto, amante,
masturbação, sexo oral, sexo anal, etc. Tais palavras eram pronunciadas em
meios masculinos e em locais privados ou íntimos. Também palavras de cunho
político tendem a tornar-se quase tabus: revolucionário, terrorista,
guerrilheiro, socialista, comunista, etc.
O poder mágico-religioso da
palavra aparece ainda num outro contexto: o do direito. Na origem, o direito
não era um código de leis referentes à propriedade (de coisas ou bens, do corpo
e da consciência), nem referentes à vida política (impostos, constituições,
direitos sociais, civis, políticos), mas era um ato solene no qual o juiz
pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz.
O direito era uma linguagem
solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em
litígio. Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Donde as
expressões "Dou minha palavra" ou "Ele deu sua palavra",
para indicar o juramento feito e a "palavra empenhada" ou
"palavra de honra". É por isso também que, até hoje, nos tribunais,
se faz o(a) acusado(a) e as testemunhas responderem à pergunta: "Jura
dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade?", dizendo:
"Juro". Razão pela qual o perjúrio – dizer o falso, sob juramento de
dizer o verdadeiro – é considerado crime gravíssimo.
Nas sociedades menos complexas do
que a nossa, isto é, nas sociedades que são comunidades, onde todos se conhecem
pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência, a palavra
dada e empenhada é suficiente, pois, quando alguém dá sua palavra, dá sua vida,
sua consciência, sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito
com a morte ou com o acordo da outra parte. É por isso que, nos casamentos
religiosos, em que os noivos fazem parte da comunidade, basta que digam
solenemente ao celebrante "Aceito", para que o casamento esteja
concretizado.
Independentemente de acreditarmos
ou não em palavras místicas, mágicas, encantatórias ou tabus, o importante é
que existam, pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem.
Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes
de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos
as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco.
A outra dimensão da linguagem
Para referir-se à palavra e à
linguagem, os gregos possuíam duas palavras: mythos e logos. Diferentemente do
mythos, logos é uma síntese de três palavras ou idéias: fala/palavra,
pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra racional do conhecimento do
real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio
e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e
necessários entre os seres).
É a palavra-pensamento
compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a
palavra-pensamento de alguma coisa: o "logia" que colocamos no final
de palavras como cosmologia, mitologia, teologia, ontologia, biologia,
psicologia, sociologia, antropologia, tecnologia, filologia, farmacologia, etc.
Do lado do logos desenvolve-se a
linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras, agora, são
conceitos ou ideias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade.
Essa dupla dimensão da linguagem
(como mythos e logos) explica por que, na sociedade ocidental, podemos
comunicar-nos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e
opostos: o da palavra solene, mágica, religiosa, artística, e o da palavra
leiga, científica, técnica, puramente racional e conceitual. Não por acaso,
muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se
torna científico quando uma explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica
cede lugar a uma explicação conceitual, causal, metódica, demonstrativa,
racional.
A origem da linguagem
Durante muito tempo a Filosofia
preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem.
Uma primeira divergência sobre o
assunto surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens (existe por
natureza) ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras
possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões
consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade
poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão
levou, séculos mais tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de
expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem
física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela
palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições
históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros
termos, são fatos culturais. Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma
estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna, passando a funcionar
como se fosse algo natural, isto é, como algo que possui suas leis e princípios
próprios, independentes dos sujeitos falantes que a empregam.
Perguntar pela origem da
linguagem levou a quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por
imitação, isto é, os humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza (dos
animais, dos rios, das cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos,
etc.). A origem da linguagem seria, portanto, a onomatopéia ou imitação dos
sons animais e naturais;
2. a linguagem nasce por imitação
dos gestos, isto é, nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o
gesto indica um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de
sons e estes se tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos;
3. a linguagem nasce da
necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a
necessidade de reunir-se em grupo para defender-se das intempéries, dos animais
e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras, formando um
vocabulário elementar e rudimentar, que, gradativamente, tornou-se mais
complexo e transformou-se numa língua;
4. a linguagem nasce das emoções,
particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo,
compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando novamente
Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas:
Não é a fome ou a sede, mas o
amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram
as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e
apaixonadas antes de serem simples e metódicas.
Assim, a linguagem, nascendo das
paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto,
tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes.
Assim como a pintura nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro
cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos.
Essas teorias não são
excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas
fontes ou modos de expressão, e os estudos de Psicologia Genética (isto é, da
gênese da percepção, imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças)
mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se.
Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de
significação, ou quando passa do expressivo ao significativo. Um gesto ou um
grito exprimem, por exemplo, medo; palavras, frases e enunciados significam o
que é sentir medo, dão conteúdo ao medo.
O que é a linguagem?
A linguagem é um sistema de
signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e
para a expressão de ideias, valores e sentimentos. Embora tão simples, essa
definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos
têm-se ocupado desde há muito tempo. Essa definição afirma que:
1. a linguagem é um sistema, isto
é, uma totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que
pode ser conhecido;
2. a linguagem é um sistema de
sinais ou de signos, isto é, os elementos que formam a totalidade lingüística
são um tipo especial de objetos, os signos, ou objetos que indicam outros,
designam outros ou representam outros. Por exemplo, a fumaça é um signo ou
sinal de fogo, a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida, manchas na pele de um
determinado formato, tamanho e cor são signos de sarampo ou de catapora, etc.
No caso da linguagem, os signos são palavras e os componentes das palavras
(sons ou letras);
3. a linguagem indica coisas,
isto é, os signos linguísticos (as palavras) possuem uma função indicativa ou
denotativa, pois como que apontam para as coisas que significam;
4. a linguagem tem uma função
comunicativa, isto é, por meio das palavras entramos em relação com os outros,
dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos,
ensinamos e aprendemos, etc.;
5. a linguagem exprime
pensamentos, sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e
de expressão, sendo neste caso conotativa, ou seja, uma mesma palavra pode
exprimir sentidos ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a
emprega, do sujeito que a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi
empregada ou do contexto em que é usada. Assim, por exemplo, a palavra água, se
for usada por um professor numa aula de química, conotará o elemento químico
que corresponde à fórmula H2O; se for empregada por um poeta, pode conotar rios,
chuvas, lágrimas, mar, líquido, pureza, etc.; se for empregada por uma criança
que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede.
A definição nos diz, portanto,
que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa,
expressiva e conotativa.
No entanto, essa definição não
nos diz várias coisas. Por exemplo, como a fala se forma em nós? Por que a
linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias (internas ao
pensamento)? Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo
cientista, pelo filósofo, pelo poeta ou pelo político? Como a linguagem pode
ser fonte de engano, de mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se
passa exatamente quando dialogamos com alguém? O que é escrever? E ler? Como
podemos aprender uma outra língua?
Na resposta a várias dessas
perguntas, vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos
a razão, a verdade, a percepção ou a imaginação, qual seja, a diferença entre
empiristas e intelectualistas.
Empiristas e intelectualistas
diante da linguagem
Para os empiristas, a linguagem é
um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição
e que constituem imagens verbais (as palavras).
As imagens corporais são de dois
tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando
aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos
anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando,
graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a
de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer
a grafia dos sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em
função da frequência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa
capacidade motriz e sensorial. A palavra ou imagem verbal é uma síntese de
imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.
O que levou a essa concepção
empirista da linguagem foi o estudo médico de "perturbações da
linguagem": a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as
palavras disponíveis na língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para
escrever determinadas palavras); a surdez verbal (ouvir as palavras sem
conseguir compreende-las) e a cegueira verbal (ler sem conseguir entender).
Os médicos que estudaram essas
perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que,
portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual
não temos consciência (desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos
consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o
sentido das palavras. A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos
psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.
Os intelectualistas, porém,
apresentam uma concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a
possibilidade para falar, ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia
e fisiologia) afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento
ou de nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é apenas a tradução auditiva,
oral, gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A
linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos,
para transmitir e comunicar ideias abstratas e valores. A palavra, dizem eles,
é uma representação de um pensamento, de uma ideia ou de valores, sendo
produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa
finalidade.
O pensamento puro seria
silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas
poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que o pensamento
procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas,
porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo
e tal sentido é a ideia formada pelo pensamento para representar ou indicar as
coisas.
A grande prova dos
intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida
cega, surda e muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter
visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a
linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais,
Helen Keller jamais teria chegado à linguagem.
Mas chegou. E chegou quando
compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das
mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual
segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água;
quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra
sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser
um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma
atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos.
As concepções empirista e
intelectualista, apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem
como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos
linguísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas;
2. ambas consideram a linguagem
como um instrumento de representação das coisas e das ideias, ou seja, as
palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo.
Esses dois pontos de concordância
fazem com que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos conotativos ou a
função conotativa da linguagem seja considerada algo perturbador e negativo. Em
outros termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras
assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do
contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado perturbador
porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e as ideias são sempre o
que elas são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido
para indicar claramente as coisas e representar claramente as ideias.
Por esse motivo, periodicamente,
aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em
"purificar" a linguagem para que ela sirva docilmente às
representações conceituais. Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para
o pensamento é a das ciências e, particularmente, a da matemática e a da
física.
Purificar a linguagem
Uma dessas correntes filosóficas
desenvolveu-se no século passado com o nome de positivismo lógico. Os
positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
1. a linguagem natural, isto é,
aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa, confusa, mescla de elementos
afetivos, volitivos, perceptivos e imaginativos;
2. a linguagem lógica, isto é,
uma linguagem purificada, formalizada (ou seja, com enunciados sem conteúdo e
avaliadores do conteúdo das linguagens científicas e filosóficas), inspirada na
matemática e sobretudo na física.
Essa linguagem obedecia a
princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações
chamadas cálculos simbólicos (semelhantes às operações da matemática), que
permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se
ênfase à sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade
representativa e indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.
A linguagem lógica era uma
metalinguagem, isto é, uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e
sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros
ou falsos. Assim, por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos: "O
livro é de autoria de José Antônio Silva" e, na metalinguagem lógica,
diremos: "A proposição ‘O livro é de autoria de José Antônio Silva’ é uma
proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x, y,
z".
No entanto, descobriu-se, pouco a
pouco, que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo
nem representativo, e, apesar disto, eram verdadeiras. Descobriu-se também que
havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados
lógicos e tipo matemático e físico. Descobriu-se, ainda, que a linguagem usa
certas expressões para as quais não existe denotação. Por exemplo, as
preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade.
Além disso, descobriu-se que a
redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer
verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia, a literatura, a
história, bem como várias ciências humanas, isto é, todas as linguagens que são
profundamente conotativas, para as quais a multiplicidade de sentido das
palavras e das coisas é sua própria razão de ser.
Crítica ao empirismo e ao
intelectualismo
As concepções empiristas e
intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no
campo da psicologia.
Os psicólogos Goldstein e Gelb
fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas. Por
exemplo, ordena-se a um afásico: "Coloque nesta pilha todas as fitas azuis
que você encontrar nesta caixa". O afásico inicia a separação. Ao
encontrar uma fita azul-claro ele a coloca na pilha das fitas azuis, conforme
lhe foi dito, mas também passa a colocar ali fitas verde-claro, rosa-claro e
lilás-claro.
Os dois psicólogos observaram,
assim, que a palavra azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o
afásico e que, portanto, seu problema de linguagem era também um problema de
pensamento. No entanto, do ponto de vista cerebral ou anatômico, a parte do
cérebro destinada à inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso,
compreendeu-se que os empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um
mero conjunto de imagens verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da
realidade e inseparável do pensamento.
Esses estudos, porém, não
reforçaram a concepção intelectualista, como poderíamos supor. De fato, basta
tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para
compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras,
não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem
pensamentos, mas os envolvem e os englobam. É justamente por isso que a criança
aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo, pois, para ela, uma coisa se torna
conhecida e pensável ao receber um nome. Como escreveu Merleau-Ponty, a
linguagem é o corpo do pensamento.
A linguística e a linguagem
Durante o século XIX, o estudo da
linguagem ou linguística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem
e das línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua como
resultado ou efeito de causas situadas no passado.
A linguagem era estudada sob duas
perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo estudo
das raízes, com o propósito de chegar a uma única língua original, mãe ou
matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que estudava
comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias
linguísticas e chegar à língua-mãe original.
Nesses estudos, retomava-se a
discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era
comum aos filólogos e gramáticos a ideia de que as línguas se transformam no
tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralinguísticos
(migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).
Tais estudos, porém, viram-se
diante de problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o
aparecimento do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural
e o singular, aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as
línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos.
Essa descoberta teve resultados
curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que
cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o
espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos
(como a alemã); línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o
latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o "caráter da língua"
segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.
A partir do século XX, uma nova
concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais
são:
● a linguagem é constituída pela
distinção entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e
um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios
próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua, tendo
existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da
língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra
ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a
minha;
● a língua é uma totalidade
dotada de sentido no qual o todo confere sentido às partes, isto é, as partes
não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo
da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por
exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons
tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual não
operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l
indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r; os japoneses
usam r indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r). Os
signos são os elementos da língua; são valores e não coisas ou entidades, isto
é, são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais
signos;
● numa língua, distinguem-se
signo e significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal
material da língua (r, l, p, b, q, g, por exemplo), enquanto o significado são
os conteúdos ou sentidos imateriais (afetivos, volitivos, perceptivos,
imaginativos, evocativos, literários, científicos, retóricos, filosóficos,
políticos, religiosos, etc.) veiculados pelos signos; o significante é uma
cadeia ou um grupo organizado de signos (palavras, frases, orações,
proposições, enunciados) que permitem a expressão dos significados e garantem a
comunicação;
● a relação dos signos ou
significantes com as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez
constituída a língua como sistema de relações entre signos/significantes e
significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou
comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes da língua.
Assim, por exemplo, a distinção entre pa e ba, pata e bata é convencional, mas
uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável;
● como as partes (signos ou
significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o
todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas
por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças
internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em
português, existem os signos p e b, d e t porque suas diferenças são
pertinentes para o sentido das palavras (dizer pata e bata, dente e tente é
dizer sentidos diferentes); também existe a oposição pertinente entre o r e o
l, mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso,
como vimos, tais signos não existem nessas línguas.
Por relação com sua própria
língua, quando um japonês fala o português, é levado a usar sempre o r (que
corresponde a um som ou signo diferencial existente em japonês, isto é, faz
sentido em japonês) e a substituir o l por r. Quando um chinês fala o português
ocorre exatamente o contrário, prevalece o l porque este som e signo tem
relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em inglês, não existe o
signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português, tende a usar an e am
porque são signos-sons que fazem sentido em inglês. A língua, portanto, é feita
dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e
que a língua é uma estrutura diacrítica;
● a língua é um código (conjunto
de regras que permitem produzir informação e comunicação) e se realiza através
de mensagens, isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que veiculam informações e
se comunicam de modo específico e particular (a mensagem possui um emissor,
aquele que emite ou envia a mensagem, e um receptor, aquele que recebe e
decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
● o sujeito falante possui duas
capacidades: a competência (isto é, sabe usar a língua) e a performance (isto
é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é a
participação do sujeito em uma comunidade linguística e a performance são os
atos de linguagem que realiza;
● a língua se realiza em duas
dimensões: a sincronia, ou seja, o todo da língua tomado na simultaneidade ou
no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou seja, a língua vista
sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de sua história;
● a língua é inconsciente, isto
é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus
princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a
empregamos sem necessidade de conhece-la cientificamente.
Alguns exemplos poderão
ajudar-nos a compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de
xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por
diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código
com suas regras próprias, princípios e leis, e cada partida é a maneira como
jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do
jogo (a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a
língua respeitando o código, mas sem conhece-lo conscientemente, enquanto os
jogadores precisam conhecer o código para poder jogar).
O jogo existe antes e depois de
cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados
diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os
jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os
lances um do outro, respondendo a cada um deles.
A linguística veio mostrar algo
muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou
traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os
intelectualistas.
Por exemplo, em inglês, é
possível dizer "The man I love". Quando traduzimos para o português
temos: "O homem que amo". Observamos que, em inglês, parece
"faltar" uma palavra: o "que". Notamos também que em inglês
parece "sobrar" uma palavra: o "I", o "eu", que não
usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e nem
sobra nada.
Este sentimento de falta ou sobra
mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário, mas
de estrutura linguística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da
palavra francesa fromage para o português, queijo, temos a impressão de que
passamos sem problema de uma língua para outra. Mas não é o caso.
Quando um inglês usa cheese, ele
está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo mais
duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno, ao
dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região
onde mora, da hora e do dia em que vai comer o queijo, sempre acompanhado de
pão e vinho.
Para um inglês e para um francês,
queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para nós,
brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com goiabada ou
com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer
cheese não é dizer fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer cheese nem
queijo; dizer queijo não é dizer cheese nem fromage.
Esse segundo exemplo explica o
que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um
signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional, mas, uma vez
criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese e não
é fromage nem queijo).
Esse exemplo nos mostra também
que uma língua é algo social, histórico, determinado por condições específicas
de uma sociedade e de uma cultura.
A experiência da linguagem
Dizer que somos seres falantes
significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma
instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres
sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao
pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a
habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa:
emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como,
experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, ideias.
Após o caminho feito até aqui,
podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns
acréscimos.
Em primeiro lugar, teremos que especificar
melhor que tipo de signo é o signo linguístico. Por que uma palavra é
diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a
diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra fumaça, que
pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A
palavra fumaça, porém, é um símbolo, isto é, algo que indica, representa,
exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela.
O símbolo é um análogo (a
bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada,
representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que
não são palavras: coisas materiais, ideias, pessoas, valores, seres
inexistentes, etc. A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação
com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
Em segundo lugar, temos que
especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou
denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar
com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que
a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como
se dá essa relação?
Essa pergunta, como vimos, era
central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi
responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da
Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com
elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se
numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e
explicam verdadeiramente a realidade?
Tradicionalmente, dizia-se que a
linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal <-> coisa indicada
(realidade)
signo verbal <-> ideia,
conceito, valor (pensamento)
No entanto, é possível perceber
que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal
indica alguma coisa ou alguma ideia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo
ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma
mesma palavra indicando coisas e ideias diferentes.
Tomemos um exemplo a que já nos
referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo
filósofo alemão Frege. "Estrela da manhã" e "estrela da
tarde" indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na
estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas
essas expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido
de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo
planeta. Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam,
isto é, referem-se aos sentidos dessa coisa.
Imaginemos ou recordemos a leitura
de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque
referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a ideias que já possuímos e
ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai
ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos ideias
que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e história
própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o
qual estamos habituados a usa-las todo dia.
Uma realidade foi criada e
penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é
possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem
sinais para indicar coisas e ideias já existentes? Com o romance descobrimos
que as palavras se referem a significações, inventam significações, criam
significações.
Imaginemos ou recordemos um
diálogo. Quantas vezes conversando com alguém, dizemos: "Puxa! Eu nunca
tinha pensado nisso!", ou então: "Você sabe que, agora, eu entendo
melhor uma ideia que tinha, mas que não entendia muito bem?", ou ainda:
"Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que
sabia".
Como essas frases são possíveis?
É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto
falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto
os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar
porque se refere a significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já
conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.
Esses exemplos nos levam a
considerar a linguagem sob uma forma ternária: palavra ou signo significante
<-> sentido ou significação; significado <-> realidade ou mundo
(coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais
O mundo suscita sentidos e
palavras, as significações levam à criação de novas expressões linguísticas, a
linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas. Há um
vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as
significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são
inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros.
A linguagem:
● refere-se ao mundo através das
significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da
palavra;
● relaciona-se com sentidos já
existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o
pensamento através das palavras;
● exprime e descobre significados
e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;
● tem o poder de suscitar
significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e,
por isso, a literatura é possível.
A linguagem revela nosso corpo
como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e
significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como
dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As
palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:
A palavra, longe de ser um
simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula
significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito,
mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem não traduz imagens
verbais de origem motora e sensorial, nem representa idéias feitas por um
pensamento silencioso, mas encarna as significações.
Linguagem simbólica e linguagem
conceitual
A diferença entre linguagem
simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessar-nos agora.
Fundamentalmente, a linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças entre
palavras e sons, entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de uma
palavra ou de um conjunto de palavras para substituir outras e criar um sentido
poético para a expressão).
A linguagem simbólica realiza-se
principalmente como imaginação. A linguagem conceitual procura evitar a
analogia e a metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e
não figurado ou figurativo. Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja
puramente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial, mas não
possui uma natureza imaginativa ou imagética.
A linguagem simbólica (dos mitos,
da religião, da poesia, do romance, do teatro) e a linguagem conceitual (das
ciências, da filosofia) diferem sob os seguintes aspectos:
● a linguagem simbólica é
fortemente emotiva e afetiva, enquanto a linguagem conceitual procura falar das
emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio
deles;
● a linguagem simbólica oferece
sínteses imediatas (imagens), enquanto a linguagem conceitual procede por
desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos, fazendo com que
acompanhemos cada passo da análise e da síntese;
● a linguagem simbólica nos
oferece palavras polissêmicas, isto é, carregadas de múltiplos sentidos
simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos
opostos e contrários; a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a
polissemia e a conotação, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido
próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é
empregada;
● a linguagem simbólica leva-nos
para dentro dela, arrasta-nos para seu interior pela força de seu sentido, de
suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem
conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos,
raciocínios e provas. A linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem
conceitual exige o trabalho lento do pensamento;
● a linguagem simbólica nos dá a
conhecer o mundo criando um outro, análogo ao nosso, porém mais belo ou mais
terrível do que o nosso, mais justo ou mais violento do que o nosso, mais
antigo ou mais novo do que o nosso, mais visível ou mais oculto do que o nosso;
a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido,
ultrapassando suas aparências e seus acidentes;
● a linguagem simbólica,
privilegiando a memória e a imaginação, nos diz como as coisas ou os homens
poderiam ter sido ou poderão ser, voltando-se para um possível passado ou para
um possível futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente, fala
do necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura também as
linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como
possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.
RESUMINDO…
A linguagem em sentido amplo
(isto é, englobando língua, fala e palavra) é constituída por quatro fatores
fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos,
neurológicos, sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar,
escutar, escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que
determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos.
Assim, o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes,
bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a
momentos diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos
(emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência) que
criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como
criam nossa capacidade para a performance linguística, seja ela cotidiana,
artística, científica ou filosófica;
4. fatores linguísticos
propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que
determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de
criar e compreender significações.
Esses fatores nos dizem por que
existe linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. É
a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a
linguagem, mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento:
● a linguagem não é mecanismo
psicomotor (os fatores 1 e 3 apresentam as condições biológicas e psicológicas
para haver linguagem, mas não qual é a natureza da experiência da palavra);
● a linguagem não é simples
relação binária entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária,
na qual os signos são símbolos que veiculam significações;
● a linguagem não traduz
pensamentos, mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos
valores;
● a linguagem é uma forma de
nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma
dimensão de nossa existência;
● a linguagem, como a percepção e
a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído
e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias, pois, como
disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear nosso
conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É,
assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o
instrumento do engano, do falso e da mentira;
● a linguagem cria, interpreta e
decifra significações, podendo faze-lo miticamente ou logicamente, magicamente
ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente.
Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
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