AS FILOSOFIAS
POLÍTICAS
O ideal republicano
À volta dos castelos feudais,
durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou burgos. Enquanto na sociedade
como um todo prevalecia a relação de vassalagem – juramento de fidelidade
prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo -, nos
burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social,
a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos,
comerciantes, etc. organizavam-se em confrarias, em que os membros estavam ligados
por um juramento de confiança recíproca. Embora internamente as corporações
também fossem hierárquicas, era possível, a partir de regras convencionadas
entre seus membros, ascender na hierarquia e, externamente, nas relações com
outras corporações, todos eram considerados livres e iguais.
As corporações fazem surgir uma
nova classe social que, nos séculos seguintes, irá tornar-se economicamente
dominante e buscará também o domínio político: a burguesia, nascida nos burgos.
Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do
Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em
desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tornam poderosas
as corporações e as famílias de comerciantes, enquanto o poderio agrário dos
barões começa a diminuir. As cidades estão iniciando o que viria a ser
conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não
podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia
feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas.
As lutas econômicas da burguesia
nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações
políticas: as cidades desejam independência em face de barões, reis, papas e
imperadores. Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e
técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias
políticas, suscitam um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o
poder teológico-político de papas e imperadores. Estamos no período conhecido
como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a
ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido
considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade
para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.
Filósofos, historiadores,
dramaturgos, retóricos, tratados de medicina, biologia, arquitetura,
matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido,
traduzido, comentado e aplicado. Esparta, Atenas e Roma são tomadas como
exemplos da liberdade republicana. Imitá-las e valorizar a prática política, a
vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela
Igreja. Fala-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as
formas mais altas da dignidade humana.
Nesse ambiente, entre 1513 e
1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno:
O príncipe, de Maquiavel. Antes de “O príncipe” Embora diferentes e, muitas
vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num
mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e
religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais
são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o
poder seria uma graça ou um fator divino; no entanto, embora recusem a
teocracia, não podem recusar uma outra idéia cristã, qual seja, a de que o
poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo
com a vontade de Deus e a Providência divina.
Assim, elementos de teologia
continuam presentes nas formulações teóricas da política. Se deixarmos de lado
as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras
políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas: ?
encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política.
Em outras palavras, para uns, o fundamento da política encontra-se em Deus
(seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência
divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na
Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente
político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que existe
uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz
instituir a vida política.
Há, pois, algo – Deus, Natureza
ou razão – anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;
? afirmam que a política é instituição
de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou
justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e
ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens
perversos e sediciosos, que devem, a qualquer preço, ser afastados da
comunidade e do poder;
? assentam a boa comunidade e a
boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional,
portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;
? classificam os regimes
políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a
aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com os segundos o
poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado
antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um
governante vicioso e perverso. Em relação à tradição do pensamento político, a
obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.
Maquiavélico, maquiavelismo
Estamos acostumados a ouvir as
expressões maquiavélico e maquiavelismo. São usadas quando alguém deseja
referir-se tanto à política quanto aos políticos, quanto a certas atitudes das
pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por
exemplo, num comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no
maquiavelismo de certos jornais, etc.).
Quando ouvimos ou empregamos
essas expressões? Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém
desleal, hipócrita, fingidor, poderosamente malévolo, que brinca com
sentimentos e desejos dos outros, mente-lhes, faz a eles promessas que sabe que
não cumprirá, usa a boa-fé alheia em seu próprio proveito. Falamos num “poder
maquiavélico” para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores,
mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que
afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais, violentos e
perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às
escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e
destruição. Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente
poderoso e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazerem
exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso.
Como se nota, maquiavélico e
maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado
diabólico. Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e
que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome,
fale em maquiavélico e maquiavelismo?
A revolução maquiavelista
Diferentemente dos teólogos, que
partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e,
diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos
filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da
experiência real de seu tempo. Foi diplomata e conselheiro dos governantes de
Florença, via as lutas européias de centralização monárquica (França,
Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das
grandes cidades e sobretudo viu a fragmentação da Itália, dividida em reinos,
ducados, repúblicas e Igreja.
A compreensão dessas experiências
históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma
nova concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para
a Itália e para Florença. Sua obra funda o pensamento político moderno porque
busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus
contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar
a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.
Se compararmos o pensamento
político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição
política, observaremos por onde passa a ruptura maquiavelista:
1. Maquiavel não admite um
fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda
Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos
opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não
ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma
comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão
humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a
instituir um pólo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse pólo
é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da
própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A política resulta
da ação social a partir das divisões sociais;
2. Maquiavel não aceita a idéia
da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como
vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os
grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser
vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum.
Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os
grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo,
como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos
fossem irmãos e iguais numa bela comunidade. A finalidade política não é, como
diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas,
como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O verdadeiro
príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais
deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si,
mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao
desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da
justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da
lei;
3. Maquiavel recusa a figura do
bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das
virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtu, mas
esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para
tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a
astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e
respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser
odiado. Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido – o
que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não
precisa ser amado, pois isto o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai
conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe
aparecerá na qualidade das instituições que soube criar e manter e na
capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou
sorte;
4. Maquiavel não aceita a divisão
clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e
suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia),
como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o
usurpado por conquista. Qualquer regime político – tenha a forma que tiver e
tenha a origem que tiver – poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de
avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade.
Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior
do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é
legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas
sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que
rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a
serviço do povo.
O príncipe pode ser monarca
hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força,
o poder. Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for uma república e
não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não
está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de
particulares. Dissemos que a tradição grega tornara ética e política
inseparáveis, que a tradição romana colocara essa identidade da ética e da política
na pessoa virtuosa do governante e que a tradição cristã transformara a pessoa
política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a
comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro
da política, orientada pela idéia de justiça e bem comum. Esse conjunto de
idéias e imagens é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção
maquiavelista que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do
príncipe virtuoso.
Quando estudamos a ética, vimos
que a questão central posta pelos filósofos sempre foi: O que está e o que não
está em nosso poder? Vimos também que “estar em nosso poder” significava a ação
voluntária racional livre, própria da virtude, e “não estar em nosso poder”
significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e
determinam nossa vontade e nossa ação. Vimos, ainda, que esse conjunto de
circunstâncias que não dependem de nós nem de nossa vontade foi chamado pela
tradição filosófica de fortuna. A oposição virtude-fortuna jamais abandonou a
ética e, como esta surgia inseparável da política, a mesma oposição se fez
presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é aquele cujas
virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante fortuna. Maquiavel
retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido inteiramente novo.
A virtu do príncipe não consiste
num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra
ela. A virtu é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias,
mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um
príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios
em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtu alguma. Para ser senhor
da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e
inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas
circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões
deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à
vontade dos outros, em algumas, ser inflexível.
O ethos ou caráter do príncipe
deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas. A
fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferecese
como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la.
Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso
e a inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia
e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para
agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.
A lógica política nada tem a ver
com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser
imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtu política. Em outras
palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia
prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade
privada dos indivíduos.
O ethos político e o ethos moral
são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara
a lógica real do poder. Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder
como independente da religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só
poderia ter sido visto como “maquiavélico”. As palavras maquiavélico e
maquiavelismo, criadas no século XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo
que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as
máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza.
Para o Ocidente cristão do século
XVI, o príncipe maquiavelista, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só
poderia ser diabólico. À sacralização do poder, feita pela teologia política,
só poderia opor-se a demonização. É essa imagem satânica da política como ação
social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam.
O mundo desordenado
A obra de Maquiavel, criticada em
toda a parte, atacada por católicos e protestantes, considerada atéia e
satânica, tornou-se, porém, a referência obrigatória do pensamento político
moderno. A idéia de que a finalidade da política é a tomada e conservação do
poder e que este não provém de Deus, nem da razão, nem de uma ordem natural
feita de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação
do poder. Em alguns casos, como na França e na Prússia, surgirá a teoria do
direito divino dos reis, baseada na reformulação jurídica da teologia política
do “rei pela graça divina” e dos “dois corpos do rei”.
Na maioria dos países, porém, a concepção
teocrática não foi mantida e, partindo de Maquiavel, os teóricos tiveram que
elaborar novas teorias políticas. Para compreendermos os conceitos que fundarão
essas novas teorias precisamos considerar alguns acontecimentos históricos que
mudaram a face econômica e social da Europa, entre os séculos XV e XVII. Já
mencionamos, ao tratar do ideal republicano, o novo papel das cidades e da nova
classe social – a burguesia – no plano econômico, social e político.
Outros fatores, além do
crescimento das corporações de ofício e do comércio, são também importantes
para o fortalecimento dessa nova classe:
? a decadência e ruína de
inúmeras famílias aristocráticas, cujas riquezas foram consumidas nas guerras
das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram abandonadas porque seus
nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram sem deixar herdeiros.
Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de armamentos e pagamentos de
exércitos para as Cruzadas, suas terras sendo confiscadas pelo rei para cobrir
as dívidas. Os servos da gleba, que trabalhavam nessas propriedades, bem como
os camponeses pobres e livres, que as arrendavam em troca de serviços, migravam
para as cidades, tornando-se membros das corporações de ofícios ou servos
urbanos de famílias nobres que haviam passado a dedicar-se ao comércio;
? a decadência agrária foi
acelerada também por uma grande peste que assolou a Europa no final da Idade
Média – a chamada peste negra -, que dizimou gente, gado e colheitas,
arruinando a nobreza fundiária e causando migrações para as cidades;
? a vida urbana provocou o
crescimento de atividades artesanais e, com elas, o desenvolvimento comercial
para compra e venda dos produtos, criando especialidades regionais e o
intercâmbio comercial em toda a Europa;
? as grandes rotas do comércio
com o Oriente, dominadas, primeiro, pelas cidades italianas e, depois, pelos
impérios ultramarinos de Portugal, Espanha, Inglaterra e França, deram origem a
um novo tipo de riqueza, o capital, baseado no lucro advindo da exploração do
trabalho dos homens pobres e livres que haviam migrado para as cidades e na
exploração do trabalho escravo de nativos e negros nas Américas. Nas cidades,
primeiro, e no campo, depois, a miséria e as péssimas condições de trabalho e
de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos.
No campo, tais revoltas foram um
dos efeitos da Reforma Protestante, que acusara a Igreja e a nobreza de
cometerem o pecado da ambição, explorando e oprimindo os pobres. Nas cidades,
as revoltas populares eram também um efeito da Reforma Protestante, que havia
declarado a igualdade dos seres humanos, afirmando como principal virtude o
trabalho e principal vício a preguiça. O desenvolvimento econômico das cidades,
o surgimento da burguesia comerciante ou mercantil, o crescimento da classe dos
trabalhadores pobres, mas livres (isto é, sem laços de servidão com os senhores
feudais), a Reforma Protestante que questionara o poder econômico e político da
Igreja, as revoltas populares, a guerra entre potências pelo domínio dos mares
e dos novos territórios descobertos, a queda de reis e de famílias da nobreza,
a ascensão de famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os
nobres, todos esses fatos evidenciavam que a idéia cristã, herdada do Império
Romano e consolidada pela Igreja Romana, de um mundo constituído naturalmente
por hierarquias era uma idéia que não correspondia à realidade.
A nova situação histórica fazia
aparecer dois fatos impossíveis de negar:
1. a existência de indivíduos –
um burguês e um trabalhador não podiam invocar sangue, família, linhagem e
dinastia para explicar por que existiam e por que haviam mudado de posição
social, mas só podiam invocar a si mesmos como indivíduos;
2. a existência de conflitos
entre indivíduos e grupos de indivíduos pela posse de riquezas, cargos, postos
e poderes anulava a imagem da comunidade cristã, una, indivisa e fraterna. Os
teóricos precisavam, portanto, explicar o que eram os indivíduos e por que
lutavam mortalmente uns contra os outros, além de precisarem oferecer teorias
capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais. Em outras palavras,
foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política. Por que
indivíduos isolados formam uma sociedade? Por que indivíduos independentes
aceitam submeter-se ao poder político e às leis?
A resposta a essas duas perguntas
conduz às idéias de Estado de Natureza e Estado Civil.
Estado de Natureza, contrato
social, Estado Civil O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar
a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as
principais concepções do Estado de Natureza:
1. a concepção de Hobbes (no
século XVII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem
isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o
homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande
medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos
inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis,
pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as
terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e,
portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto
tenha força para conquistar e conservar;
2. a concepção de Rousseau (no
século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem
isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá,
desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua
generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos
existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um
terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade
privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de
Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.
O Estado de Natureza de Hobbes e
o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta
entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para
cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à
sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.
A passagem do Estado de Natureza
à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos
renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e
concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e
aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a
soberania.
Como é possível o contrato ou o
pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano –
“Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei
Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo” – para legitimar a
teoria do contrato ou do pacto social. Parte-se do conceito de direito natural:
por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à
sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres,
ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos.
Um contrato ou um pacto, dizia a
teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres
e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo
pactuado. A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar
o contrato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os
mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para
transferir a liberdade a um terceiro; e se consentem voluntária e livremente
nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da
soberania.
Assim, por direito natural, os
indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto
ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los. Para Hobbes, os
homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um
corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama
Estado.
Para Rousseau, os indivíduos
naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo
moral coletivo ou Estado. A teoria do direito natural e do contrato evidencia
uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em
comunidade, mas em sociedade.
A idéia de comunidade pressupõe
um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, compartilhando os mesmos bens, as
mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e possuindo um destino comum. A
idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos
independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que
decidem, por um ato voluntário, tornaremse sócios ou associados para vantagem
recíproca e por interesses recíprocos.
A comunidade é a idéia de uma
coletividade natural ou divina; a sociedade, a de uma coletividade voluntária,
histórica e humana. A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da
sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e
aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes
transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a
transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a
liberdade e a propriedade privada dos governados.
Estes transferiram ao soberano o
direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes,
da regulamentação dos contratos econômicos, isto é, a instituição jurídica da
propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento
civil, a legislação sobre a herança, etc.). Quem é o soberano? Hobbes e
Rousseau diferem na resposta a essa pergunta. Para Hobbes, o soberano pode ser
um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática.
O fundamental não é o número de
governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta
pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas,
tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade
privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite
dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por
eles que o soberano foi criado.
O soberano detém a espada e a
lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens. Para Rousseau, o soberano
é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral coletiva livre e corpo
político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como
povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados
em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o
representante da soberania popular.
Os indivíduos aceitam perder a
liberdade civil; aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade
civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem
representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do
governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e
súditos das leis.
A teoria liberal no pensamento
político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural,
mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no
Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens,
essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A
propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do
soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.
De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio
econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia
monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também
permaneciam.
Para enfrentá-los em igualdade de
condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão
grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à
nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua
primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do
século XVII e início do século XVIII.
Locke parte da definição do
direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a
conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho. Como fazer do
trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural?
Deus, escreve Locke, é um artífice, um
obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do
trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou
o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao
expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o
teria com o suor de seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, no
momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como
fruto legítimo do trabalho.
Por isso, de origem divina, ela é
um direito natural. O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções
que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito
natural de propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente
legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como
superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao
seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade. O
burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres,
mas também como superior aos pobres.
De fato, se Deus fez todos os
homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o
direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que
não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição
inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para
outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo
para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente
para conseguir uma propriedade. Se a função do Estado não é a de criar ou
instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a
nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?
A teoria liberal, primeiro com
Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da
Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max
Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:
1. por meio das leis e do uso
legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de
propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a
propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de
liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos
proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades
econômicas;
2. visto que os proprietários
privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou
do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercalase uma esfera social, a
sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a
função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a
função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade
civil;
3. o Estado tem o direito de legislar,
permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o
direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir
a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os
governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões
sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.
Na Inglaterra, o liberalismo se
consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa,
será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos,
consolida-se em 1776, com a luta pela independência.
Liberalismo e fim do Antigo
Regime
As idéias políticas liberais têm
como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos
reis, derivadas da concepção teocrática do poder. O liberalismo consolida-se
com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, com a Revolução Francesa, que
derrubou o Antigo Regime.
Antigo, em primeiro lugar, porque
politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque
socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social e na
organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao
senhor. Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil
(relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de
hierarquia. Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de
submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia
da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante.
O término do Antigo Regime se
consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito
natural dos indivíduos, desfazendo a imagem do rei como marido da terra, senhor
dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho
quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada,
ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca.
O poder tem a forma de um Estado
republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é
tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos
representantes dos proprietários privados. As teorias políticas liberais
afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder
político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes
cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e
propriedade).
O indivíduo é o cidadão.
Afirmam também a existência de
uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a
sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam
suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e
posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe
peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça
perigoso para a manutenção da própria sociedade.
Afirmam o caráter republicano do
poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos
proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder
judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares. Quanto ao
poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está
submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito
por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que
possuírem uma certa renda ou riqueza. O Estado, através da lei e da força, tem
o poder para dominar – exigir obediência – e para reprimir – punir o que a lei
defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida
pelos proprietários privados e seus representantes.
A cidadania liberal
O Estado liberal se apresenta
como república representativa constituída de três poderes: o executivo
(encarregado da administração dos negócios e serviços públicos), o legislativo
(parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário (magistraturas de
profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui um corpo de
militares profissionais que formam as forças armadas – exército e polícia -,
encarregadas da ordem interna e da defesa (ou ataque) externo. Possui também um
corpo de servidores ou funcionários públicos, que formam a burocracia,
encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos.
O Estado liberal julgava
inconcebível que um não-proprietário pudesse ocupar um cargo de representante num
dos três poderes. Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e
independentes, queriam dizer com isso que eram dependentes e não-livres os que
não possuíssem propriedade privada. Estavam excluídos do poder político,
portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a maioria da sociedade. Lutas
populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o Estado
liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a cidadania
política.
Com exceção dos Estados Unidos,
onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII,
nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir
completamente no século XX, como conclusão de um longo processo em que a
cidadania foi sendo concedida por etapas. Não menos espantoso é o fato de que
em duas das maiores potências mundiais, Inglaterra e França, as mulheres só
alcançaram plena cidadania em 1946, após a Segunda Guerra Mundial. Pode-se
avaliar como foi dura, penosa e lenta essa conquista popular, considerando-se
que, por exemplo, os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadãos
nos anos 60 do século passado. Também é importante lembrar que em países da
América Latina, sob a democracia liberal, os índios ficaram excluídos da
cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994.
As lutas indígenas, em nosso continente, e as africanas continuam até nossos
dias.
A idéia de revolução
A política liberal foi o
resultado de acontecimentos econômicos e sociais que impuseram mudanças na
concepção do poder do Estado, considerado instituído pelo consentimento dos
indivíduos através do contrato social. Tais acontecimentos ficaram conhecidos
com o nome de revoluções burguesas, isto é, mudanças na estrutura econômica, na
sociedade e na política, efetuadas por uma nova classe social, a burguesia. O
uso da palavra revolução para designar tais mudanças é curioso.
De fato, essa palavra provém do
vocabulário da astronomia, significando o movimento circular completo que um
astro realiza ao voltar ao seu ponto de partida. Uma revolução se efetua quando
o movimento total de um astro faz coincidirem seu ponto de partida e seu ponto
de chegada.
Revolução designa movimento
circular cíclico, isto é, repetição contínua de um mesmo percurso. Como entender
que essa palavra tenha entrado para o vocabulário político significando
mudanças e alterações profundas nas relações sociais e no poder? Como entender
que, em vez de significar retorno circular e cíclico ao ponto de partida,
signifique exatamente o contrário, isto é, percurso rumo ao tempo novo e à
sociedade nova? Para responder a essas perguntas precisamos examinar um pouco
mais de perto as revoluções burguesas, isto é, a Revolução Inglesa de 1644, a
Revolução Norte Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.
Embora em todas elas o resultado
tenha sido o mesmo, qual seja, a subida e consolidação política da burguesia
como classe dominante, nas três houve o que um historiador denominou de
“revolução na revolução”, indicando com isso a existência de um movimento
popular radical ou a face democrática e igualitária da revolução, derrotada
pela revolução burguesa.
Em outras palavras, nas três
revoluções, a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza,
passou a dominar o Estado e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças,
enquanto as classes populares, que participaram daquela vitória, desejavam
muito mais: desejavam instituir uma sociedade inteiramente nova, justa, livre e
feliz. Ora, as classes populares não possuíam teorias políticas de tipo
filosófico e científico. Para explicar o mundo em que viviam e o mundo que
desejavam dispunham de uma única fonte: a Bíblia. Através da religião, possuíam
duas referências de justiça e felicidade: a imagem do Paraíso terrestre (no
Antigo Testamento) e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém (no Novo
Testamento) que restauraria o Paraíso depois que Cristo viesse ao mundo pela
segunda vez e, no fim dos tempos ou tempo do fim, derrotasse para sempre o Mal.
As classes populares revolucionárias dispunham, portanto, de um imaginário
messiânico e milenarista (milenarista porque o Reino de Deus na Terra duraria
mil anos de felicidade, abundância e justiça).
Ao lutarem politicamente, as
classes populares olhavam para o passado (o ponto de partida dos homens no
Paraíso) e para o futuro (o ponto de chegada dos homens na Nova Jerusalém).
Olhavam para o tempo futuro e novo – a sociedade dos justos na Terra -, que
seria a restituição ou restauração do tempo passado original – o Paraíso.
Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do movimento político coincidiam
com a existência da justiça e da felicidade, o futuro e o passado se
encontravam, fechando o ciclo e o círculo da existência humana, graças à ação
do presente. Por isso, designaram os acontecimentos de que eram os sujeitos e
protagonistas com a palavra revolução. Se compararmos os movimentos
revolucionários dos séculos XVII e XVIII com a teoria política liberal,
notaremos uma diferença importante entre eles. De fato, as teorias liberais
separam o Estado e a sociedade civil.
O primeiro aparece como instância
impessoal de dominação (impõe obediência), de estabelecimento e aplicação das
leis, como garantidor da ordem através do uso legal da violência para punir
todo o crime definido pelas leis, e como árbitro dos conflitos sociais. A
sociedade civil, por seu turno, aparece como um conjunto de relações sociais
diversificadas entre classes e grupos sociais, cujos interesses e direitos
podem coincidir ou opor-se. Nela existem as relações econômicas de produção,
distribuição, acumulação de riquezas e consumo de produtos que circulam através
do mercado.
O centro da sociedade civil é a
propriedade privada, que diferencia indivíduos, grupos e classes sociais, e o
centro do Estado é a garantia dessa propriedade, sem, contudo, mesclar política
e sociedade. O coração do liberalismo é a diferença e a distância entre Estado
e sociedade. Ora, as revoluções, e sobretudo a face popular das revoluções,
operam exatamente com a indistinção entre Estado e sociedade, entre ação
política e relações sociais.
As revoluções pretendem derrubar
o poder existente ou o Estado porque o percebem como responsável ou cúmplice
das desigualdades e injustiças existentes na sociedade. Em outras palavras, a
percepção de injustiças sociais leva às ações políticas. Uma revolução pode
começar como luta social que desemboca na luta política contra o poder ou pode
começar como luta política que desemboca na luta por uma outra sociedade. Eis
por que, em todas as revoluções burguesas, vemos sempre acontecer o mesmo
processo: a burguesia estimula a participação popular, porque precisa que a
sociedade toda lute contra o poder existente; conseguida a mudança política,
com a passagem do poder da monarquia à república, a burguesia considera a
revolução terminada; as classes populares, porém, a prosseguem, pois aspiram ao
poder democrático e desejam mudanças sociais; a burguesia vitoriosa passa a
reprimir as classes populares revolucionárias, desarma o povo que ela própria
armara, prende, tortura e mata os chefes populares e encerra, pela força, o
processo revolucionário, garantindo, com o liberalismo, a separação entre
Estado e sociedade.
Significado político das
revoluções.
Uma revolução, seja ela burguesa
ou popular, possui um significado político da mais alta importância, porque
desvenda a estrutura e a organização da sociedade e do Estado. Ela evidencia:
? a divisão social e política,
sob a forma de uma polarização entre um alto opressor e um baixo oprimido;
? a percepção do alto pelo baixo
da sociedade como um poder que não é natural nem necessário, mas resultado de
uma ação humana e, como tal, pode ser derrubado e reconstruído de outra
maneira;
? a compreensão de que os agentes
sociais são sujeitos políticos e, como tais, dotados de direitos. A consciência
dos direitos faz com que os sujeitos sociopolíticos exijam reconhecimento e
garantia de seus direitos pela sociedade e pelo poder político. Eis por que
toda revolução culmina numa declaração pública conhecida como Declaração
Universal dos Direitos dos Cidadãos;
? pela via da declaração dos
direitos, uma revolução repõe a relação entre poder político e justiça social,
mas com uma novidade própria do mundo moderno, pois a justiça não depende mais
da figura do bom governo do príncipe virtuoso, e sim de instituições públicas
que satisfaçam à demanda dos cidadãos ao Estado. Cabe ao novo poder político
criar instituições que possam satisfazer e garantir a luta revolucionária por
direitos.
As revoluções sociais
Acabamos de ver que as revoluções
modernas possuem duas faces: a face burguesa liberal (a revolução é política,
visando à tomada do poder e à instituição do Estado como república e órgão
separado da sociedade civil) e a face popular (a revolução é política e social,
visando à criação de direitos e à instituição do poder democrático que garanta
uma nova sociedade justa e feliz). Vimos também que, nas revoluções modernas, a
face popular é sufocada pela face liberal, embora esta última seja obrigada a
introduzir e garantir alguns direitos políticos e sociais para o povo, de modo
a conseguir manter a ordem e evitar a explosão contínua de revoltas populares.
A face popular vencida não desaparece. Ressurge periodicamente em lutas
isoladas por melhores condições de vida, de trabalho, de salários e com
reivindicações isoladas de participação política. Essa face popular tende a
crescer e manifestar-se em novas revoluções (derrotadas) durante todo o século
XIX, à medida que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares
se tornam uma classe social de perfil muito definido: os proletários ou
trabalhadores industriais.
Correspondendo à emergência e à
definição da classe trabalhadora proletária e à sua ação política em revoluções
populares de caráter político-social, surgem novas teorias políticas: as várias
teorias socialistas.
As teorias socialistas tomam o
proletariado como sujeito político e histórico e procuram figurar uma nova
sociedade e uma nova política na qual a exploração dos trabalhadores, a
dominação política a que estão submetidos e as exclusões sociais e culturais a
que são forçados deixem de existir.
Porque seu sujeito político são
os trabalhadores, essas teorias políticas tendem a figurar a sociedade futura
como igualitária, feita de abundância, justiça e felicidade. Como percebem a
cumplicidade entre o Estado e a classe economicamente dominante, julgam que a
existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da burguesia e
por isso afirmam que, na sociedade futura, quando não haverá divisão social de
classes nem desigualdades, a política não dependerá do Estado. São, portanto,
teorias antiestatais, que apostam na capacidade de autogoverno ou de autogestão
da sociedade.
Convite à Filosofia
Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000
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